São Paulo, domingo, 21 de março de 2004 |
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+ ciência ANÁLISE DO DNA MITOCONDRIAL DE AFRICANOS MODERNOS NEGROS AMERICANOS TRAÇA RETRATO GENÉTICO DOS POVOS ESCRAVIZADOS NA ERA COLONIAL E TRAZIDOS PARA A AMÉRICA RAÍZES DA DIÁSPORA NEGRA
Reinaldo José Lopes free-lance para a Folha
Os traficantes de escravos que arrastaram para
a América mais de 11 milhões de africanos durante a era colonial não costumavam se preocupar com a origem deles -aliás, interessava-lhes apagar qualquer ligação dos escravizados com o
continente materno. Mas uma pista essencial sobre essa
diáspora eles não conseguiram eliminar: o DNA dos
descendentes dos cativos. Um grupo liderado por cientistas espanhóis usou essa informação para traçar um
dos retratos mais completos já feitos sobre a origem da
população negra do continente.
Com essa proporção nas mãos e os dados do mtDNA, incluindo a provável "árvore geológica" dos grupos -ou seja, a maneira pela qual um ancestral comum das diferentes linhagens foi se diferenciando em "famílias" (ou povos) diferentes- os pesquisadores utilizam um modelo matemático que lhes permite estimar, com certa margem de erro, o peso genético de cada região africana na formação da população negra da América. Confirmando a história O resultado mais marcante para o Brasil está de acordo com o que os registros históricos indicam: uma grande contribuição de escravos de Angola e do Congo, membros do tronco lingüístico banto. Em segundo lugar vêm os povos da África Ocidental, como os iorubás, cuja presença ajudou a criar o candomblé e outros elementos da cultura negra no Brasil. Moçambique, outra fonte histórica de cativos, surpreendentemente não pareceu tão importante, afirmam os pesquisadores da Espanha. Nos Estados Unidos, a situação se inverteu: 53% da população negra de lá é originária da África Ocidental, enquanto a proporção chega a 69% na América Central. Os dados históricos, por outro lado, parecem deixar claro que o tráfico negreiro atingiu de forma bem menos pesada as populações da África Oriental (nos atuais Quênia, Etiópia e Tanzânia) e as tribos de caçadores-coletores khoisan do sul da África. E os genes o confirmam: em nenhuma região da América a contribuição populacional dessas áreas passa de 4,5%. No entanto, ainda há certas coisas difíceis de explicar: "Quase ninguém ainda tem dados de Angola, que passou por 30 anos de guerra, nem de várias outras regiões importantes na África Central. Mas a grande proporção de L3e [um dos haplótipos] você não explica nem por Angola", afirma Sergio Danilo Pena, geneticista da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). População misteriosa "Pode ser que eles tenham vindo de outro lugar ou de uma subpopulação muito específica que ainda não foi amostrada", diz o pesquisador mineiro, que está trabalhando ao lado de Bortolini para tentar sanar essas lacunas. O grande buraco vem mesmo do centro-oeste africano, onde as poucas etnias com alguma amostragem representativa são de pigmeus -grupo que aparentemente pouco contribuiu para a massa de cativos trazidos através do Atlântico. Um problema dos dados históricos, diz Pena, é que muitos escravos recebiam o nome do porto de onde eram embarcados para a América (como a expressão "benguela", usada para os que vinham de portos no golfo africano de mesmo nome), mas a região de origem dos cativos podia estar muito longe, em algum cafundó do interior africano. Além do episódio trágico e recente da escravidão, análises como a de Salas e de seus colegas brasileiros podem ajudar a entender andanças ainda mais antigas. A principal delas é a expansão dos bantos, que saíram de algum lugar perto do atual Camarões há 3.000 anos para dominar quase todo o centro, sudeste e sul da África. Ao contrário da imagem tradicional e equivocada dos africanos como um aglomerado de povos tribais, os bantos dominavam a agricultura, forjavam armas de ferro e eram cavaleiros habilidosos. A expansão desses guerreiros-lavradores, feita num intervalo de tempo muito curto do ponto de vista da transformação do DNA, ajudou a criar um panorama genético homogêneo em boa parte da África moderna. "O Brasil tem sido muito interessante porque nos ajuda a reconstruir a expansão banta, uma vez que aí existem linhagens que são africanas, mas que ainda não conseguimos amostrar na África", explica Salas. Isso vale até para quem se considera branco, já que muitos brasileiros com essa cor de pele (quase 30%, de acordo com alguns estudos) têm um ancestral materno africano e, portanto, portam seu mtDNA, mesmo sem serem aparentemente negros. "As linhagens africanas no Brasil, em muitas ocasiões já mestiças, nos têm servido de janela através da qual podemos ver eventos demográficos que aconteceram há milhares de anos", afirma o biólogo espanhol. Por outro lado, a própria expansão banta, ao tornar um só povo o mais numeroso da África em pouco tempo, também deve confundir a questão da origem exata por muito tempo. "Diferenciar oeste africano de banto é fácil. O difícil é separar banto de banto, porque não houve tempo de as linhagens de mtDNA adquirirem variações significativas", explica Bortolini. Por isso, ela avalia que muito trabalho ainda será necessário antes que um descendente de africanos no Brasil consiga determinar, com certeza, de que país e povo vieram seus ancestrais. Próximo Texto: Micro/Macro: A misteriosa (e trágica) ilha de Páscoa Índice |
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