São Paulo, quinta-feira, 22 de abril de 2004

Próximo Texto | Índice

BIOTECNOLOGIA

Grupo obtém camundongo saudável e fértil com óvulo reconstruído de duas roedoras, sem espermatozóide

Japão cria fêmea sem pai com duas mães

SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Um brinde ao feminismo radical: cientistas anunciaram o nascimento do primeiro mamífero que é filho só da mãe. Ou melhor, de duas mães.
A roedora Kaguya (personagem de um conto de fada japonês), orgulho de um grupo liderado por Tomohiro Kono, da Universidade de Agricultura de Tóquio, foi originada de um óvulo não-fecundado de camundongo. Equipado com duas cópias de genoma materno, vindas de dois animais, ele foi estimulado a se dividir e originar um embrião, como se tivesse sido unido a um espermatozóide.
A participação masculina jamais aconteceu. Para todos os efeitos, o embrião tinha duas mães e nenhum pai.
Ao contrário do que se pode pensar, esse método de reprodução baseado apenas em contribuições femininas é comum na natureza -embora normalmente exija apenas uma mãe. Chama-se partenogênese (do grego, "nascimento virgem") e ocorre em várias espécies animais.
O processo não ocorre em mamíferos, porém. Ou melhor, não ocorria, até Kono e seus colegas mudarem as regras do jogo, em experimentos relatados hoje na revista científica britânica "Nature" (www.nature.com).
Para chegar ao sucesso, eles precisaram negociar um acordo de paz entre os dois conjuntos de genomas maternos, que tendem a rivalizar entre si para ver qual deles realmente "dá as cartas" no desenvolvimento do organismo.

Genomas em guerra
Quase todas as células de um mamífero vêm com seu material genético aos pares. Um dos conjuntos de DNA é cedido pelo pai, e o outro, pela mãe. A exceção são os espermatozóides, que vêm com um só, justamente para servir à reprodução. Os óvulos começam com dois, mas perdem um deles quando fecundados.
O DNA da mãe e do pai têm basicamente os mesmos genes, mas em vários casos apenas uma cópia precisa ser ativada. Quando os genomas materno e paterno se encontram para formar um embrião, já estão com um armistício assinado: cada um fornecerá certos genes para uso no organismo, e seus correspondentes do outro lado serão "desligados", sem conflito. Esse ato de parcimônia genética é chamado pelos cientistas de "imprinting", ou "estampagem".
No caso da partenogênese, quando induzida a ocorrer em mamíferos, o par de genomas materno briga entre si e o resultado é superativação de alguns genes e silenciamento de outros. Nenhum embrião de camundongo criado desse modo costuma sobreviver por mais de dez dias.
A solução encontrada por Kono e companhia foi produzir uma modificação genética numa roedora, apagando numa das cópias um gene que em tese não seria ativado no DNA paterno. Esse "pacote genético" foi então combinado ao de outra roedora, que tinha o genoma inalterado. O óvulo resultante foi então induzido a se dividir e formar um embrião.
Curiosamente, essa mudança não só regulou corretamente a expressão do gene alterado, mas veio acompanhada da regulação de vários outros genes que supostamente seriam vitimados pela ausência da tal estampagem.
O resultado não só demonstrou que a estampagem é o mecanismo que barra a partenogênese em mamíferos, mas também que o problema pode ser contornado.

Dúvidas
Apesar disso, o elo de ligação entre a mutação induzida pelos cientistas e o sucesso experimental ainda é considerado duvidoso por alguns. Rudolf Jaenisch, do Instituto Whitehead, nos EUA, sugere que um mecanismo desconhecido e aleatório pode estar envolvido no resultado positivo.
"Eu acho que é um evento estocástico que algumas vezes faz os camundongos sobreviverem", disse o pesquisador, em entrevista ao site da revista "The Scientist" (www.the-scientist.com).
A razão para desconfiança é justamente a taxa de sucesso. Kono e seus colegas começaram com 457 óvulos, dos quais 371 foram implantados em 24 "roedoras de aluguel". Desses, 28 atingiram um estágio fetal avançado, mas 18 nasceram mortos. Oito sobreviveram só por 15 minutos após o parto. Somente dois nasceram saudáveis, e um deles foi sacrificado para estudo.
A remanescente Kaguya, em compensação, cresceu e até teve seus próprios filhotes -do modo tradicional, é bom que se diga.


Próximo Texto: Arqueologia: Grupo acha "outra" Rosetta
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.