São Paulo, domingo, 22 de abril de 2007

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Marcelo Leite

Um defeito de cor

Há muito mais contribuição iorubá e jeje na herança dos pretos de todo o Brasil, não só da Bahia

Quem não comprar e ler um livro com esse título é ruim da cabeça ou doente do ouvido. Fisgado por ele e pelos elogios de Millôr Fernandes na orelha do romance, enfrentei as 952 páginas escritas por Ana Maria Gonçalves. Saí mais feliz do que entrei. E olhe que o livro tem muitos defeitos, a começar pelo tamanho injustificado (mesmo após ter ceifado 450 páginas, a autora poderia ter muito bem dispensado outras 300, mas parece ter se afeiçoado demais aos frutos de dois anos de pesquisa).
A autobiografia de Kehinde (Luísa Andrade da Silva) narrada por Gonçalves mergulha o leitor na vida atribulada de uma menina do Daomé. Seqüestrada aos oito anos, termina vendida como escrava ao Brasil. Da morte de Taiwo, sua irmã gêmea ("ibêji", em ioruba), no tumbeiro para Salvador, ao périplo infrutífero em busca do filho mulato vendido pelo pai português para saldar dívida de jogo, o romance é um passeio pouco edificante pelo século 19 afro-brasileiro. As condições de vida de um escravo não servem para deixar ninguém feliz, decerto. Não faltam no livro narrativas cruentas de escravas com olhos arrancados e escravos castrados a faca e tição, apanhados no embate sexual entre sinhô e sinhá.
Há também espaço suficiente, nas 952 páginas, para amizade, amor e sexo consensual entre afro e luso-brasileiros. Sobra cordialidade. Ainda assim, a miscigenação não chega a insinuar signo algum de felicidade. Quando muito, de ambivalência. O contentamento verdadeiro surge com a descoberta de um mundo nunca vislumbrado, o das várias etnias e culturas africanas que aportaram no Brasil por força da escravidão. As religiões, os panos, os falares, as comidas. E as palavras, os nomes... Hauçá. Muçurumim. Koikumo. Malê. Agontimé. Chachá. Axé. Egungum. Egum. Abiku. Geledé. Ebó. Jeje. Tudo tão novo na língua que o leitor branco por vezes se sentirá como se o defeito de cor estivesse na sua (a expressão designava o impedimento legal, porém jeitosamente contornável, a que negros assumissem certos cargos).
A esta altura é o leitor desta coluna que deve estar sentindo algo estranho. Onde foi parar a ciência? Calma. Kehinde/Luísa nasceu no Daomé, Costa da Mina, onde hoje se encontram países como Benin. O leitor desinformado estranhará a quase total ausência de menções a Angola e Moçambique, colônias lusas de onde presumiria que veio a maior parte dos escravos para o Brasil. É o que diz, ou dizia, a historiografia. Mesmo com a destruição dos documentos da escravidão ordenada por Rui Barbosa em 1890, pesquisadores como Herbert Klein e David Eltis (EUA) haviam estimado com base em registros de viagens que só 10% dos escravos embarcados para o Brasil tinham saído da África Ocidental, região entre o Senegal e a Nigéria, berço de Luísa/Kehinde.
Pois essa estimativa foi agora posta em questão pela genética, como revela reportagem de Ricardo Zorzetto na revista "Pesquisa Fapesp". Analisando o DNA de pretos (negros e pardos) de São Paulo, Rio e Porto Alegre, Maria Cátira Bortolini (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e Sérgio Danilo Pena (Universidade Federal de Minas Gerais), encontraram respectivamente 40%, 31% e 18% de tipos genéticos associados com aquele pedaço da África.
Há muito mais contribuição iorubá e jeje, assim, na herança dos pretos de todo o Brasil, não só da Bahia. Os parentes, orixás, ancestrais e voduns de Kehinde povoaram o país, na diáspora que sua biografia representa tão bem.


MARCELO LEITE é autor do livro "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007), que estará autografando terça-feira, a partir das 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (av. Paulista, 2.073, Centro, São Paulo, tel. 3170-4033)


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