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Micro/Macro
A curvatura do espaço-tempo
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
O animador de televisão americano
David Letterman gosta de fazer a
lista das "Dez Mais", que podem ser perguntas, fatos absurdos, notícias estranhas etc. Eu também gosto, modestamente, de fazer uma lista, a das "dez perguntas mais populares em cosmologia".
Recentemente (na coluna de 8 de junho),
escrevi sobre a questão do começo, onde
a pergunta (uma das mais populares da
lista) era "O que ocorreu antes do começo?" Ou seja, se o Universo surgiu mesmo do Big Bang, o que havia antes disso?
Essa questão aborda a natureza do
tempo, sua origem e seu significado. Mas
ficou faltando algo. A resposta depende
da teoria da relatividade geral, desenvolvida por Einstein em 1915 (a versão especial da teoria data de 1905). Nela, para falar de tempo deve-se necessariamente falar de espaço: o que existe é um contínuo
espaço-temporal de quatro dimensões,
três espaciais (norte-sul, leste-oeste, acima-abaixo) e uma temporal.
Esse contínuo se chama espaço-tempo.
Segundo a teoria da relatividade, qualquer evento ocorrendo na natureza, seja
uma bola caindo ao chão, seja a explosão
de uma estrela, deve ser caracterizado
pela sua posição nesse espaço-tempo
quadridimensional. Portanto, um ponto
no espaço-tempo é descrito por quatro
números, três para a sua posição e um relacionado ao instante em que o evento
ocorre. "Calma aí!" -exclama o leitor.
"Você está me confundindo: no dia-a-dia também descrevemos o movimento
dos objetos usando quatro números, três
para a sua posição no espaço e um para o
tempo. Qual a diferença entre esses quatro números e o espaço-tempo da teoria
da relatividade?"
A pergunta é boa, mesmo que não esteja na lista. A diferença é enorme. Na física
aplicável ao dia-a-dia, carros, trens, elevadores etc., espaço e tempo são vistos
como entidades separadas, absolutas,
uma distinta do outra. Na relatividade, o
tempo é tratado como uma dimensão espacial, uma distância no espaço-tempo.
Para isso, ele é multiplicado pela velocidade da luz. (Lembre-se de que velocidade tem unidade de distância dividida por
tempo, como em km/h. Portanto, multiplicar tempo por velocidade resulta em
distância.)
Vejamos um exemplo. Uma bola cai de
uma altura de um metro. Segundo a física não-relativística, falamos de sua posição inicial, de sua posição final e de
quanto tempo ela demorou para cair.
Em relatividade, falamos de dois pontos
no espaço-tempo, separados por uma
distância.
Essa junção do espaço com o tempo
causa efeitos peculiares. Na sua maioria,
eles passam despercebidos, limitados
que somos em nossa percepção da realidade. Mas, quando movimentos ocorrem com velocidades próximas da velocidade da luz, ou quando a força gravitacional é muito intensa, a natureza unificada do espaço-tempo se torna palpável,
mesmo para nossos olhos míopes. A pergunta da lista está ligada com esses efeitos gravitacionais fortes.
"Como o espaço pode encurvar?" Espaço é a entidade que usamos para medir distâncias entre pontos. Um espaço
deformável, portanto, é aquele em que as
distâncias podem mudar, como em uma
superfície elástica puxada nessa ou naquela direção. Segundo Einstein, a presença de massas deforma o espaço-tempo, alterando a geometria do espaço e o
fluir do tempo. Uma analogia muito comum é o de uma bola de chumbo sobre
um colchão: na vizinhança mais imediata da bola o colchão se deforma.
Claro, a analogia é apenas sugestiva, já
que o que deforma o colchão é o peso da
bola na gravidade terrestre. Mas a idéia é
que campos gravitacionais fortes alteram a geometria do espaço-tempo. Esse
é o caso perto de estrelas muito maciças,
ou dos misteriosos buracos negros, onde
a curvatura é tal que o espaço-tempo se
fecha sobre si mesmo, como um casulo.
Pode parecer estranho que algo tão intangível como o espaço (ou o tempo) responda à presença de massas. Mas é importante lembrar que teorias físicas são
descrições da natureza criadas com um
propósito muito claro, o de ajudar na
compreensão de fenômenos mensuráveis e quantificáveis. Se elas ocasionalmente resultam em explicações surpreendentes, é porque nossa miopia é
grande. Cada teoria pode ser vista como
uma lente um pouco mais forte, que permite desvendar um ou outro novo detalhe da natureza, de suas infinitas formas
e criatividade.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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