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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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Micro/Macro

A curvatura do espaço-tempo

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

O animador de televisão americano David Letterman gosta de fazer a lista das "Dez Mais", que podem ser perguntas, fatos absurdos, notícias estranhas etc. Eu também gosto, modestamente, de fazer uma lista, a das "dez perguntas mais populares em cosmologia". Recentemente (na coluna de 8 de junho), escrevi sobre a questão do começo, onde a pergunta (uma das mais populares da lista) era "O que ocorreu antes do começo?" Ou seja, se o Universo surgiu mesmo do Big Bang, o que havia antes disso?
Essa questão aborda a natureza do tempo, sua origem e seu significado. Mas ficou faltando algo. A resposta depende da teoria da relatividade geral, desenvolvida por Einstein em 1915 (a versão especial da teoria data de 1905). Nela, para falar de tempo deve-se necessariamente falar de espaço: o que existe é um contínuo espaço-temporal de quatro dimensões, três espaciais (norte-sul, leste-oeste, acima-abaixo) e uma temporal.
Esse contínuo se chama espaço-tempo. Segundo a teoria da relatividade, qualquer evento ocorrendo na natureza, seja uma bola caindo ao chão, seja a explosão de uma estrela, deve ser caracterizado pela sua posição nesse espaço-tempo quadridimensional. Portanto, um ponto no espaço-tempo é descrito por quatro números, três para a sua posição e um relacionado ao instante em que o evento ocorre. "Calma aí!" -exclama o leitor. "Você está me confundindo: no dia-a-dia também descrevemos o movimento dos objetos usando quatro números, três para a sua posição no espaço e um para o tempo. Qual a diferença entre esses quatro números e o espaço-tempo da teoria da relatividade?"
A pergunta é boa, mesmo que não esteja na lista. A diferença é enorme. Na física aplicável ao dia-a-dia, carros, trens, elevadores etc., espaço e tempo são vistos como entidades separadas, absolutas, uma distinta do outra. Na relatividade, o tempo é tratado como uma dimensão espacial, uma distância no espaço-tempo. Para isso, ele é multiplicado pela velocidade da luz. (Lembre-se de que velocidade tem unidade de distância dividida por tempo, como em km/h. Portanto, multiplicar tempo por velocidade resulta em distância.)
Vejamos um exemplo. Uma bola cai de uma altura de um metro. Segundo a física não-relativística, falamos de sua posição inicial, de sua posição final e de quanto tempo ela demorou para cair. Em relatividade, falamos de dois pontos no espaço-tempo, separados por uma distância.
Essa junção do espaço com o tempo causa efeitos peculiares. Na sua maioria, eles passam despercebidos, limitados que somos em nossa percepção da realidade. Mas, quando movimentos ocorrem com velocidades próximas da velocidade da luz, ou quando a força gravitacional é muito intensa, a natureza unificada do espaço-tempo se torna palpável, mesmo para nossos olhos míopes. A pergunta da lista está ligada com esses efeitos gravitacionais fortes.
"Como o espaço pode encurvar?" Espaço é a entidade que usamos para medir distâncias entre pontos. Um espaço deformável, portanto, é aquele em que as distâncias podem mudar, como em uma superfície elástica puxada nessa ou naquela direção. Segundo Einstein, a presença de massas deforma o espaço-tempo, alterando a geometria do espaço e o fluir do tempo. Uma analogia muito comum é o de uma bola de chumbo sobre um colchão: na vizinhança mais imediata da bola o colchão se deforma.
Claro, a analogia é apenas sugestiva, já que o que deforma o colchão é o peso da bola na gravidade terrestre. Mas a idéia é que campos gravitacionais fortes alteram a geometria do espaço-tempo. Esse é o caso perto de estrelas muito maciças, ou dos misteriosos buracos negros, onde a curvatura é tal que o espaço-tempo se fecha sobre si mesmo, como um casulo.
Pode parecer estranho que algo tão intangível como o espaço (ou o tempo) responda à presença de massas. Mas é importante lembrar que teorias físicas são descrições da natureza criadas com um propósito muito claro, o de ajudar na compreensão de fenômenos mensuráveis e quantificáveis. Se elas ocasionalmente resultam em explicações surpreendentes, é porque nossa miopia é grande. Cada teoria pode ser vista como uma lente um pouco mais forte, que permite desvendar um ou outro novo detalhe da natureza, de suas infinitas formas e criatividade.


Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"


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