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Flyer versus 14-Bis
Os irmãos Wright foram os primeiros a voar, mas Santos-Dumont fez mais pela aviação
CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
Mas, afinal, quem
é o pai dessa
criança?
O físico Henrique Lins de
Barros dá um suspiro ao telefone quando ouve a pergunta. Para o pesquisador do CBPF
(Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas), talvez o maior especialista vivo em Santos-Dumont, já passou da hora de pôr
um ponto final a uma controvérsia tão antiga quanto inútil.
A criança -no caso o avião-
não tem um "pai". Tem vários.
"É muito complicado, num
desenvolvimento tecnológico,
dizer quem foi o pai da criança.
Quem inventou o navio? Qualquer um. Um produto tecnológico são várias descobertas que
vão culminar num determinado momento", diz.
O "momento" do avião é
complicado de determinar.
No dia 23 de outubro de
1906, Alberto Santos-Dumont,
mineiro de nascimento, parisiense de adoção, decolou com
um aparelho mais pesado que o
ar. Seu 14-Bis, uma geringonça
de 290 quilos e com um motor
de 50 cavalos, subiu a uma altura de quase três metros no
Campo de Bagatelle, em Paris,
e voou 60 metros. Foi o primeiro vôo feito em público e num
aparelho que saiu do chão e
pousou por meios próprios
("pousou" em termos; na verdade, o 14-Bis desceu bruscamente e quebrou as rodas). O
feito lhe valeu um prêmio de
3.000 francos, instituído por
Ernest Archdeacon para quem
voasse mais de 25 metros.
Longe dali, numa praia de
Kitty Hawk, no Estado americano da Carolina do Norte, o
primeiro vôo motorizado de
um aparelho mais pesado que o
ar era feito por dois mecânicos
de bicicleta -só que três anos
antes. Em 17 de dezembro de
1903, Orville e Wilbur Wright
haviam voado 260 metros com
seu Flyer, uma aeronave improvável de 300 quilos e com
um motor de 12 cavalos, que
decolara de uma colina. O feito,
sem testemunhas, foi comunicado por telegrama.
Ciosos de seu invento, que
pretendiam patentear, os irmãos Wright cortaram todos
os contatos com o mundo exterior -mantidos até 1902. De
1905 a 1908, quando se estabeleceu a Federação Aeronáutica
Internacional, pararam de
voar. Sua primazia só seria
comprovada inquestionavelmente em 1908, quando voaram (ainda sem decolar por
meios próprios) espantosos
124 quilômetros na França.
"Até Santos-Dumont reconheceu que não seria possível
em 1908 que os Wright não tivessem uma experiência grande de vôo anteriormente, porque, quando os europeus estão
voando 10 quilômetros e ficando 15 minutos no ar, o avião dos
Wright fica mais de duas horas
no ar. Então eles já faziam isso
antes, como estavam falando",
diz Lins de Barros. Os americanos não inventaram o avião,
mas foram os primeiros a voar.
O Flyer tinha problemas, é
verdade: pesado, instável e com
asas inclinadas para baixo, precisou de ventos fortes para fazer seu vôo, descendente, do alto de uma colina. Era um beco
sem saída evolutivo que jamais
poderia sair do chão sozinho.
E, claro, tem a história da catapulta. O vôo dos Wright vão
valeu porque o Flyer foi atirado
de uma catapulta. Portanto,
Santos-Dumont teve mesmo a
primazia. Certo?
Errado. "O Flyer não foi catapultado. Isso faz parte dessa
história mal contada, mal formulada no Brasil", afirma o
pesquisador do CBPF, que acaba de lançar o livro "O Desafio
de Voar" (Metalivros), sobre a
conquista do ar e os brasileiros
que participaram dela. A catapulta seria adotada pelos
Wright só depois de 1903.
Irradiação
O título de "inventor do
avião" poderia ser dividido entre muita gente. Como o alemão Otto Lilienthal, morto em
1896 num vôo de planador. Como Gabriel Voisin e Louis Blériot -o primeiro a voar sobre o
canal da Mancha, em 1909.
Os próprios Wright e Santos-Dumont já eram celebridades
no meio aeronáutico no começo do século passado: os americanos criaram a configuração
"canard" (ganso) para seus planadores, com o leme na frente,
usada no próprio 14-Bis. E o
brasileiro ficara famoso ao
criar o primeiro balão dirigível,
o nš 6, em 1901. Tanto que foi a
Santos-Dumont que a imprensa local de Ohio (terra natal dos
irmãos) comparou os irmãos ao
noticiar o feito de 1903.
Se os Wright voaram antes,
foi ao brasileiro que a irradiação original da aeronáutica se
deveu -portanto, se a alcunha
de "pai do avião" é exagero, a de
"pai da aviação" é justíssima.
"Ele resolve uma das questões essenciais do vôo, que é tirar o avião do chão. Conseguiu
transportar as forças que ele
conhece e que atuam quando o
avião está pousado e fazer a
transição entre a situação do
avião pousado e do avião voando, onde as novas forças têm
que atuar e ele não conhece direito onde elas atuam", afirma
Lins de Barros.
"Essa contribuição do Santos-Dumont é fundamental por
duas razões: primeiro porque
ele dá a chave da decolagem.
Segundo porque ele executa isso publicamente, reconhecido
por uma comissão internacional. Por isso, em um ano, entre
1906 e 1907, todos os inventores importantes estão voando."
A prova disso é que o primeiro avião a ser produzido em série na história, que inspirou o
desenho de vários outros, foi
uma invenção de Dumont: o
Demoiselle, de 1907. Esse precursor do ultraleve teve seu
projeto distribuído gratuitamente pelo brasileiro. Cerca de
300 foram produzidos pela fábrica Clément Bayard.
Nos EUA aconteceu exatamente o contrário. Orville e
Wilbur Wright eram capitalistas que fizeram questão de patentear o aeroplano. "Eles poderiam patentear o motor, o
sistema de esquis. Tentaram
patentear o avião, o vôo."
Não conseguiram. Com isso,
atrasaram o desenvolvimento
tecnológico nos EUA até 1911,
ao tentar impedir outros americanos, como Glenn Curtiss,
de desenvolver aeronaves.
"A Scientific American chegou a perguntar se eram "flyers"
(voadores) ou "liars" (mentirosos)", diz Lins de Barros.
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