São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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Ciência em Dia

Outras modernidades no Ituqui

Marcelo Leite
editor de Ciência

Ituqui é uma ilha a jusante de Santarém (PA), na margem direita do Amazonas. Ali surgiu há dez anos o Grupo Renascer, um punhado de famílias de agricultores-pescadores que se organizou para enfrentar um pecuarista com planos de criar búfalos na ilha defronte.
O fazendeiro decerto achava que a modernidade e o progresso estavam nas patas dos quadrúpedes bubalinos. O pessoal do Ituqui discordou. Sua experiência dizia que búfalos e lagos de pesca não podem conviver no mesmo espaço.
Na época das cheias, entre os meses de dezembro e julho, as águas do Solimões e do Amazonas sobem dezenas de metros e inundam quilômetros margens adentro. Formam com isso centenas ou milhares de lagos, que com a baixa das águas podem ficar isolados, tornando-se um excelente local para pesca de peixes como pirarucu, tambaqui e curimatã.
Os moradores de Ituqui sabem que, se exagerarem na captura, o pescado some. Daí que seu grupo, além de enfezar-se com o pecuarista, também firmou um dos muitos acordos de pesca espontâneos das comunidades ribeirinhas amazônicas. Eles estabelecem limites para a pesca em certas épocas e certos locais. Nos lagos Verde e Pixuna, por exemplo, a proibição é permanente, pois se acredita que dali saem os exemplares que vão repovoar os outros lagos.
Como também é comum na Amazônia, o Ituqui e seu zoneamento ecológico intuitivo acabaram incorporando uma parceria com alguma ONG (organização não-governamental), no caso o Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, www.ipam.org.br). Surgiu o Projeto Várzea, com o objetivo de aprofundar a experiência e de aferir com objetividade científica seus resultados. Até um reflorestamento das áreas de lagos com espécies fornecedoras de alimentação para os peixes foi iniciado, com espécies como uruá, socoró e bacuri.
Pouco depois, entrou na roda também a WWF-Brasil, braço da poderosa rede internacional Fundo Mundial para a Natureza. E foi a WWF (www.wwf.org.br) que anunciou, no começo do mês, os primeiros resultados quantificados -e cientificamente validados- dessas iniciativas para conferir sustentabilidade à pesca: elas conseguem elevar em até 60% a produtividade, se comparadas com os métodos tradicionais de pesca. Segundo comunicado à imprensa da WWF, áreas manejadas chegam a render 41 kg de peixe por hectare (100 m x 100 m), contra 26 kg na pesca convencional.
A parceria Ipam-WWF, que dura três anos, já rendeu seis trabalhos científicos. Eles foram escritos por David "Toby" McGrath e Oriana Almeida, ambos dos Ipam, e por Kai Lorenzen, do Imperial College de Londres, que orientou a tese de doutorado de Almeida. Eles entrevistaram 3.000 pessoas, nos oito principais portos de pesca e de 259 famílias de 18 comunidades de ribeirinhos (9 com acordos de pesca e 9 sem).
Talvez com a acreana Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente alguém em Brasília comece a se importar com esse tipo de atividade, embora ela gere só 87 mil empregos (57% deles nas comunidades como Ituqui). A conclusão racional a tirar é que se mostra prudente e produtivo generalizar a experiência dos acordos de pesca, talvez criando direitos de propriedade sobre a exploração de cada lago, como cotas de captura.
Quem já provou uma costela de tambaqui na brasa ou um filé de pirarucu sabe o tamanho do prejuízo à civilização que uma diminuição permanente dos exemplares capturados traria, como já ocorre nos oceanos com o bacalhau.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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