São Paulo, Domingo, 23 de Janeiro de 2000


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+ ciência

A década do cérebro

Reprodução
Imagem do cérebro humano


Sandra Blakeslee
do "The New York Times"

Os cientistas, quando fazem uma retrospectiva das descobertas feitas na década de 1990, a chamada "década do cérebro", percebem que entre elas se destaca a mais espantosa de todas e, para muitos, a mais difícil de aceitar: a de que as pessoas nem sempre nascem com todas as células cerebrais que terão na vida.
Na verdade, parece que, entre o nascimento e o final da adolescência, bilhões de novas células são acrescentadas ao cérebro, construindo novos circuitos de neurônios à medida que crianças e adolescentes interagem com seu meio ambiente. O processo de acréscimo se torna mais lento na idade adulta, mas não pára. Ao que tudo indica, os circuitos maduros são mantidos pelo acréscimo de novas células até a chegada da velhice.
A próxima década promete trazer uma revisão total de como a mente se organiza. As descobertas já lançaram luz sobre mecanismos do aprendizado, da memória e do envelhecimento nos cérebros normais, além de ter sugerido tratamentos para acidentes vasculares e outras desordens. Ademais, podem trazer soluções para alguns enigmas, entre eles o das crianças que tiveram metade de seus cérebros retirados para o tratamento de epilepsia, mas que se desenvolvem normalmente, como se tivessem apenas metade do espaço.
Alguns pesquisadores começaram a isolar células que continuam a se dividir e a gerar novos neurônios, na esperança de implantá-los em áreas danificadas por doenças ou acidentes. Diferentemente das células dos ossos, da pele, dos vasos sanguíneos e de outras partes do corpo, que durante toda a vida humana se dividem, gerando novas células, acreditava-se que o cérebro não se renovasse. Embora se soubesse que o cérebro adquire novas conexões na infância, de modo que muitos danos podem ser parcialmente compensados, acreditava-se que ninguém pudesse ganhar novas células cerebrais. Pelo contrário: dizia-se que a única perspectiva futura era a degradação mental gradativa, à medida que as células cerebrais se exaurissem, morressem e nunca fossem substituídas.
Essas idéias estavam tão enraizadas que muitos cientistas ainda têm dificuldade em dar crédito às descobertas de que o cérebro produz novas células após o nascimento. Segundo o neurocientista Fred Gage, do Instituto Salk, de La Jolla, Califórnia, mesmo quando esses cientistas aceitam essa hipótese, argumentam que não há provas. Os céticos, como o neurocientista Pasko Rakic, da Universidade Yale, afirmam que quem quiser mudar o pensamento dominante acerca do desenvolvimento cerebral terá de fornecer provas.
O neurobiólogo Per Andersen, da Universidade de Oslo, na Noruega, disse que várias descobertas foram recebidas com um "silêncio retumbante". Para ele, as novas descobertas são tão espantosas e revolucionárias que os neurobiólogos não conseguem digeri-las.

Série de estudos indica que células nervosas têm uma capacidade de regeneração maior do que se pensava


A visão tradicional do desenvolvimento do cérebro humano se baseia em experimentos conduzidos por Rakic nos anos 60 com macacos. Rakic afirmou que, com base na detecção de divisão celular em tecidos cerebrais existentes então, não havia provas de que novas células estivessem sendo geradas.
Rakic e outros inferiram que o mesmo se aplicava a todos os primatas, incluindo os humanos. De acordo com essa teoria, o cérebro cresce quando novas fibras conectoras, as sinapses e os dendrites, proliferam em volta de um número fixo de células cerebrais. As células não conectadas aos circuitos por meio dessas fibras em crescimento morreriam.
Assim, segundo Rakic, o cérebro se desenvolve por um processo de "poda" e modelagem, não pela construção de redes com bilhões de células novas.
O fato de muitas pessoas não recuperarem a capacidade de falar ou andar depois de sofrer acidentes vasculares cerebrais ou outros danos consolidou a visão de que o cérebro adulto não é acrescido de novas células. Se fosse, acreditavam os cientistas, os casos de recuperação seriam mais comuns.
A idéia foi contestada pela primeira vez em 1965, quando cientistas reportaram a geração de novas células numa região do cérebro de um rato adulto -o hipocampo. É o lugar onde primeiro se formam as memórias de coisas e lugares.
Um ano depois, descobriu-se que novas células estavam migrando para o bulbo olfatório, onde são decodificados os odores. Os pesquisadores identificaram uma área dentro de duas cavidades do cérebro dos ratos, os ventrículos, onde novas células nascem e migram para o interior do cérebro. Essa zona contém as células-tronco, que dão origem a outros tipos de células, incluindo os neurônios e as células glia, que os alimentam.
As novas células detectadas nos cérebros dos ratos surgem mais rapidamente depois de o animal enfrentar desafios como treinamento intenso, danos físicos ou uma infecção, afirma Raastad. Alguns anos depois, os pesquisadores detectaram as mesmas células em camundongos, cobaias, coelhos e macacos adultos. Em meados dos anos 80, outros pesquisadores encontraram evidências do nascimento de células nos cérebros de canários adultos que aprendiam novas "canções" e de chapins que recordavam onde tinham armazenado sementes para o inverno. Mas, conta Raastad, os pesquisadores ainda não acreditavam que novas células pudessem surgir em cérebros humanos.
Em 1997, Elizabeth Gold, professora-assistente de neurociência na Universidade de Princeton, e seus colegas demonstraram que a neurogênese ocorria nos hipocampos de saguis. Mas Rakic e outros cientistas disseram que isso não era possível em humanos.
Em 1998, Gage demonstrou que o número de neurônios nos hipocampos de camundongos criados em ambientes estimulantes aumentavam em 15% -e que as células nasciam na zona dos ventrículos.
"Isso nos levou a procurar a mesma coisa nos humanos", conta Gage. Enquanto isso, colegas suecos usavam uma substância que se integra no DNA de células que se dividem para rastrear células de tumores em pacientes com câncer.
No ano passado, essa substância foi encontrada nos hipocampos de cinco doentes de câncer cujos cérebros foram dissecados imediatamente após sua morte. Foi uma descoberta "altamente instigante", diz Gage. Significa que o cérebro gera novas células numa área que já guarda relação com a memória de curto prazo.
Segundo Gage, é possível que alguma espécie de neurogênese exista no cérebro e na medula espinhal. Como faz a pele, é possível que o cérebro se renove o tempo todo. Mas um grande dano cerebral pode superar a capacidade de renovação do sistema.
Quanto ao restante do cérebro, Gold injetou em células de macacos a mesma tintura utilizada nos experimentos humanos. Rastreando a substância, constatou-se que neurônios nasceram nos ventrículos e migraram para o córtex superior, onde haviam formado novos axônios. Aparentemente, segundo Gold, se conectam a circuitos locais e talvez até a circuitos mais amplos -e o mesmo talvez se aplique ao cérebro humano.
Apesar de tudo, a descoberta mais surpreendente sobre o crescimento de células no cérebro humano vem sendo ignorada pela maioria dos cientistas. Isso começou há mais de 20 anos, quando um médico ainda em treinamento, William Rodman Shankle, salvou uma pilha de caixas contendo o maior banco de dados já formado sobre o desenvolvimento do córtex cerebral humano.
Os dados tinham sido coletados entre 1939 e 1967 por Jesse L. Conel, do Hospital Infantil de Boston, que examinou cérebros de bebês e crianças de até 6 anos de idade, mortas em decorrência de doenças que não afetaram seus cérebros. Conel tomou mais de 4 milhões de medidas, incluindo largura, espessura e densidade de células cerebrais no momento do nascimento e aos 1, 3, 6, 15, 24, 48 e 72 meses de idade.
Conel publicou oito volumes de pesquisas. Ele não dispunha de ferramentas computadorizadas para medir o número exato de células, disse Shankle, hoje da Universidade da Califórnia em Irvine, mas descreveu a aparência de colunas verticais de neurônios em cada idade e em 35 diferentes áreas dos cérebros. Hoje, sabe-se que as funções cerebrais superiores se originam nessas colunas. Shankle reexaminou os dados de Conel, analisando o encolhimento das células e distinguindo os neurônios de outros tipos de células. Encontraram um padrão dinâmico em todas as 35 áreas.
Em cada milímetro quadrado de tecido, disse Shankle, o número de neurônios aumenta em um terço entre o nascimento e os 3 meses de idade. Entre os 3 e os 15 meses, o número cai de volta ao nível do nascimento. A partir dos 15 meses, o número aumenta. Aos 6 anos é o dobro do número no nascimento. Segundo Shankle, é provável que continue aumentando, embora mais lentamente, até os 18 ou 21 anos de idade.
Para Shankle, o cérebro cresce ao gerar novas colunas, não ao aumentar o tamanho das colunas existentes. "Desconfio que um único conjunto de regras é responsável pela construção de todos os cérebros. As crianças passam pelas mesmas etapas de desenvolvimento na mesma rapidez."
Esse crescimento e construção de tecido cerebral acelerado pode ajudar a explicar por que crianças cujos hemisférios cerebrais esquerdo ou direito foram inteiramente removidos parecem desenvolver-se de maneira mais ou menos normal, disse Shankle. O ritmo de crescimento, ou a plasticidade, é tão grande no início da vida que as crianças conseguem aprender a fazer a maioria das coisas com o tecido remanescente. Anderson diz que as constatações de Shankle foram "bem descritas e analisadas a contento" e conclui: "Não vejo nenhuma falha no tratamento que ele deu ao material".
Mas o neurocientista William T. Greenough, da Universidade de Illinois, ainda não está convencido de que Shankle tenha provado que o crescimento se deu a partir de novas células nervosas e não das células de apoio, as glia. "É possível que ele tenha razão, mas, para termos certeza, o trabalho precisaria ser repetido", diz.
Steven A. Goldman, do Centro Médico Cornell, em Nova York, está estudando tecidos retirados de epilépticos e encontrou células progenitoras nos ventrículos. Cerca de 10% das células nessa zona geram outros tipos de células. É um número pequeno, mas pode ser suficiente para cuidar da manutenção do córtex superior.
O desafio, para Goldman, é fazer com que essas células sejam úteis. "Não sabemos para onde elas vão, mas sabemos que se dividem. Algumas se tornam neurônios." Se fossem encontrados meios de induzir sua ampliação no cérebro humano, novos tratamentos para desordens cerebrais poderiam surgir.


Tradução de Clara Allain


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