São Paulo, domingo, 23 de março de 1997.

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CIÊNCIA
Anúncio do fim do mundo causou mortes no Brasil

RONALDO ROGÉRIO
DE FREITAS MOURÃO
especial para a Folha

A socioastronomia, novo ramo das ciências sociais, é muito pouco estudada em nossos meios. Algumas valiosas contribuições foram relacionadas pelo incansável estudo do folclorista brasileiro Luiz da Câmara Cascudo. A palavra foi cunhada nos anos 70 nos EUA, em virtude dos movimentos sociais que surgiram como consequência do aparecimento do cometa Kohoutek, em 1973.
Conhecedor de meu interesse por esses estudos, tive indizível alegria de escutar do nosso dicionarista maior, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, no chá da Academia Brasileira, em 12 de maio de 1983, uma canção que sua mãe, Maria Buarque Ferreira, cantava quando ele era menino e cujo tema era o cometa Biela.
Parece que essa música era corrente no Nordeste no princípio do século. Pelo menos em Passo do Camaragibe. De acordo com a memória de Aurélio, que conseguiu revivê-la em seus ritmos, a letra da canção era:

"Eu passava a noite em claro,
Com minha sogra na janela,
Esperando a minha morte,
na passagem do Biela.

O boato corre corre,
em minha porta bateu,
e o Biela lá nos ares,
nunca mais apareceu".


No sertão do Ceará, os cantadores assim falavam do tal anúncio do fim do mundo:

"Em 13 de novembro
O dia determinado
pela profecia do dr. Falb
Ia o mundo acabar...

O boato corre, corre
Com ardor e a prevenir
Que não tarda o cataclisma
Para a terra demolir!

Mas os garotos a trocaram
Qua...Qua...Qua...Qua...
E os velhos a se lamentarem
Qua...Qua...Qua...Qua...
E as beatas a rezarem
Qua...Qua...Qua...Qua..."


A origem da popularidade desse cometa deve-se à profecia de um cientista alemão, Rudolfo Falb, professor de geologia e matemática, que anunciou o fim do mundo na noite de 13 para 14 de novembro de 1899, quando um monstruoso cometa envolveria o planeta por todos os lados com sua enorme cauda flamejante.
Seus gases asfixiantes e inflamáveis acenderiam a nossa atmosfera, provocando a queda de uma enorme enxurrada de bólidos incandescentes. Tal profecia charlatanesca não poderia merecer uma consideração especial de um iniciado em astronomia.
Todavia, como nem todos são capazes de apreciar os problemas astronômicos que esse tipo de previsão explora, as consequências, na época, foram inacreditáveis.
Houve mesmo algumas mortes. Em Santa Rosa, quatro senhoras enlouqueceram. Em Jundiaí, uma negra se atirou a um poço. Em Santos, uma senhora, ao sair de uma igreja local, morreu. Seu atestado de óbito rezava: "Impressão pelo terror do cometa Biela".
De fato Falb referiu-se ao Biela, cometa periódico de seis anos e nove meses, que está associado à chuva de estrelas cadentes de 13 e 14 de novembro que, por terem o seu radiante na constelação de Andrômeda, ficaram conhecidas como andromedidas ou andromedídios, último vestígio do cometa, que se fragmentou em 1846.
Desde a sua descoberta, o Biela tem sido uma história de inesperadas e surpreendentes revelações. Descoberto a 8 de março de 1772 pelo astrônomo francês Jacques Laibets-Montaigne (1716-1788), na cidade de Limoges, com um telescópio Dollond, ainda invisível a olho nu, atingiu mais tarde a magnitude 6, ou seja, o limite dos astros visíveis com vista desarmada. Foi nessas condições que o astrônomo francês Charles Joseph Messier (1730-1817), o grande caçador de cometas do século 18, o observou em 15 de março.
Quando de sua maior proximidade da Terra, em 8 de dezembro, foi possível observá-lo a olho nu. Estudando o seu movimento, o astrônomo alemão Friedrich Bessel (1784-1846) previu seu retorno para 1826. Alertados pela previsão, os astrônomos iniciaram a procura.
O grande sucesso coube ao militar austríaco Wilhelm von Biela (1782-1856), da cidade de Josephstadt, na Boêmia (hoje pertencente à República Tcheca), que o descobriu em 27 de fevereiro de 1826.
Em 1839, não foi possível observá-lo, pois o cometa passou muito próximo do Sol. Em sua quinta aparição, o cometa Biela foi localizado simultaneamente em Roma, a 26 de novembro de 1845, pelo astrônomo italiano Francesco de Vico (1805-1845), e em Berlim pelo astrônomo alemão Johann G. Galle (1812-1910).
Durante essa passagem em 1º de dezembro o cometa apresentou-se ligeiramente alongado. Uma quinzena depois, fragmentou-se. Em 1852, os dois núcleos foram redescobertos pelo astrônomo italiano Angelo Secchi (1818-1878), em Roma. Desde então, como diz a canção, o cometa nunca mais apareceu. Até que, inesperadamente, na noite de 27 de novembro de 1872, um curioso chamou a atenção do padre Secchi para uma belíssima chuva de estrelas cadentes.
O astrônomo francês Camille Flammarion, que se encontrava em Roma, chorou de tristeza ao ter notícia, no dia seguinte, do belo e indizível fenômeno cósmico.
Em 1879, esperou-se o cometa e a chuva de estrelas. Nada ocorreu. Todavia, em 1885, uma brilhante chuva de meteoros permitiu concluir que o cometa Biela havia se desagregado em um pulvéreo enxame de meteoróides.
Em 1899, surgiu o terror do fim do mundo num fogo de artifício cósmico. Ao contrário da chuva de estrelas prevista por Luiz Cruls, astrônomo do Observatório Nacional, o que ocorreu foi uma terrível tempestade.
Para eliminar a ameaça do fim do mundo, o astrônomo brasileiro de origem belga Cruls (1848-1908) anunciou que a única ocorrência extraordinária seria uma possível chuva de estrelas, como a que já havia ocorrido anteriormente. Os jornais do Rio de Janeiro gostaram da idéia, o que provocou um verdadeiro rebuliço.
Todos queriam assistir ao apoteótico fenômeno. O povo correu para as praias, e as ruas e praças encheram-se de curiosos, alguns com suas lunetas para assistir ao feérico espetáculo. A chuva de estrelas cadentes não ocorreu.
A decepção foi enorme. Um aguaceiro caiu no dia, provocando um sentimento ainda maior de descrença. Na "Revista Ilustrada", o caricaturista Angelo Agostini gozou o astrônomo, vestindo-o de astrólogo.
Olavo Bilac, na época cronista do jornal "Gazeta de Notícias", de Ferreira Viana, escreveu uma crônica na qual esclarecia, com muita ironia, que as estrelas têm pudor, admitindo o fracasso do fenômeno astronômico ao orgulho e à castidade das estrelas.
Como as estrelas foram sempre uma das imagens preferidas do poeta, Bilac, como sempre fazia com os assuntos de sua preferência, não se satisfez com a crônica e investiu no verso, admitindo a chuva de estrelas como uma realidade, e assim a descreveu:

"Venham estrelas, estrelas,
Caiam nas ruas, nas salas,
Que Deus não possa contê-las
Que ninguém possa contá-las.

Grandes, pequenas, vermelhas,
Azuis, verdes, amarelas,
Não escapem duas telhas
Contanto que venham elas.

Veremos que belo jogo,
É este milagre da uva:
Quando o céu abrir em fogo,
Lá vêm os astros em chuva.

Chuva no céu e na terra,
Que solene bebedeira!
Os deuses fazendo guerra
Aos devotos da parreira.

Que foi aquilo! Que tombo
Levou agora um borracho!
Quebrou-lhe uma estrela o lombo,
E uma outra já estava embaixo".

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