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Micro/Macro
As verdades e incertezas do processo científico
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
A ciência é muitas vezes percebida como infalível, as palavras do cientista
sempre certas, sem dúvida ou erro nas
descobertas. O único outro candidato
mortal a essa infalibilidade é, se não me
engano, o papa. Deixando questões teológicas de lado, hoje, domingo de Páscoa, um dia após o aniversário dos 500
anos de nossa descoberta -ao menos
pelos europeus-, gostaria de abordar a
questão da "verdade" em ciência.
Essa questão não é simples e, como toda a questão filosófica, não tem resposta
única. Há versões do que seja verdade
em áreas diferentes do conhecimento e,
às vezes, essas versões entram em choque. Aqui segue a minha versão que, espero, incite a reflexão do leitor. O desenvolvimento da ciência moderna, isto é,
dos últimos 400 anos aproximadamente,
nos ensinou que a verdade em si não
existe: o que há é um ideal de verdade, ou
melhor, de perfeição racional. Essa é
uma herança dos filósofos pitagóricos da
Grécia Antiga, reexpressa por Platão em
termos de duas realidades, a das idéias e
a da percepção sensorial da realidade física. Para Platão, apenas no mundo das
idéias podia-se contemplar o conceito de
verdade; o mundo dos sentidos é necessariamente imperfeito, pois a representação concreta de uma idéia jamais será
tão perfeita quanto a própria idéia. Um
exemplo é a imagem que você faz de um
círculo, e a sua representação no papel.
A ciência é uma representação da realidade física e, portanto, imperfeita. O
processo científico, a geração de hipóteses que são testadas experimentalmente
ou por meio de observações (como na
astronomia), é uma busca contínua por
uma verdade -uma perfeição- que jamais será alcançada. Uma exceção é a
matemática pura, que lida com objetos
que existem num mundo de idéias.
O leitor pode pensar que essa imperfeição é uma fraqueza da ciência. Pois é o
oposto! O fato de que as representações
da realidade, como leis e teorias, são imperfeitas define o processo científico. Eis
uma ilustração esquemática de como a
coisa funciona. Um cientista observa um
novo fenômeno; essa descoberta comprova certas hipóteses feitas por outros
cientistas (em geral, os "teóricos"), que
precisavam de uma comprovação para
ser aceitas. Ou elas são uma completa
surpresa. A comunidade científica responde imediatamente: outros grupos
tentam replicar a descoberta em seus laboratórios, verificando se os resultados
estão corretos ou precisos. Caso a descoberta seja confirmada, ótimo, as hipóteses adiantadas estão comprovadas e
aprendemos algo de novo sobre a natureza. Caso contrário, os resultados e as
hipóteses devem ser abandonados ou,
no mínimo, modificados. Se a descoberta tiver sido uma surpresa, hipóteses e
modelos são adiantados para tentar explicá-la por meio de leis simples.
O processo não para aí. Uma vez que ficou claro que o fenômeno realmente
existe e as hipóteses funcionam, tenta-se
explorar os limites dessas hipóteses.
Eventualmente, descobre-se que os modelos nelas baseados deixam de funcionar e novas hipóteses são necessárias.
Recentemente, um grupo na Itália declarou ter observado um novo tipo de
partícula elementar da matéria, cuja
existência havia sido predita por certas
teorias chamadas supersimétricas. Elas
são completamente diferentes da matéria que conhecemos, isto é, aquela feita
de prótons, nêutrons e elétrons. Possivelmente, elas podem constituir a chamada
"matéria escura", que cosmólogos acreditam que possa constituir 90% da matéria no Universo. Imediatamente, outro
grupo de físicos na Califórnia, que também procura por essas partículas, criticou os resultados dos italianos: os detectores do grupo californiano (e russo) não
assinalaram a existência das partículas.
Possivelmente, dizem eles, os sinais vistos pelos italianos são uma contaminação vinda de outras fontes, como a radiatividade natural. Essa polêmica, ainda
em aberto, ilustra nossa discussão. Buscamos a "verdade", mas sabendo que ela
será sempre temporária: mesmo que as
partículas existam, comprovando as teorias atuais, aparecerão outras que forçarão sua revisão, e assim por diante.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro
"Retalhos Cósmicos".
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