São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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Ciência em Dia

Medicina e conservação

Marcelo Leite
em Cambridge (EUA)

Já se disse que tradutores são traidores, mas às vezes não há mesmo como deixar de ser. Considere a expressão "conservation medicine", que ouvi pela primeira vez durante a Conferência de Jornalismo Ambiental organizada pela Fundação Nieman no fim de semana passado. O primeiro impulso é traduzi-la como "medicina de/da conservação", seguindo o exemplo de "conservation biology", mas o resultado não faz muito sentido, porque se trata da saúde de seres humanos, não de sua conservação, como se pretende fazer com o ambiente (cuja saúde também está em pauta).
"Medicina conservadora" é ainda pior. "Medicina com conservação"... não. "Medicina e conservação" talvez seja o menos ruim, mas o melhor mesmo é explicar do que estou falando, afinal. Melhor dizendo, do que falou Mary Pearl, presidente da ONG Wildlife Trust, na conferência da Nieman (fundação ligada à Universidade Harvard, dedicada desde 1938 ao aperfeiçoamento do jornalismo).
A idéia é que hoje há um número crescente de doenças cuja propagação tem muito a ver com interferência humana em ecossistemas e populações naturais, o que, portanto, demanda um tipo de abordagem coordenada, com a participação de médicos, epidemiologistas, veterinários e biólogos da conservação.
Um dos exemplos preferidos de Pearl é a chamada doença da vaca louca, em que uma proteína defeituosa (príon) se multiplica e destrói partes do cérebro do animal, transformando-o em algo parecido com uma esponja (daí o nome técnico de encefalopatia espongiforme bovina, ou BSE, na abreviação em inglês). Todo mundo sabe que seres humanos podem desenvolver moléstia parecida, após ingerir produtos bovinos contaminados (não há casos registrados no Brasil), e que ovelhas têm uma variante da doença. Menos conhecido é o fato de que só o controle da carne bovina e ovina não afasta totalmente o perigo.
Pearl prefere referir-se à doença por outra denominação técnica, TSE (encefalopatia espongiforme transmissível), que descreve melhor o fato de a doença nada ter de específico contra bois e vacas -como fica evidente no fato de os príons passarem de uma espécie à outra. Em laboratório, já se mostrou que é possível transmiti-la também para roedores e macacos. Outras 20 espécies animais foram contaminadas em zoológicos da Europa, após alimentação com carne ou ração contaminada. Um tipo de TSE também afeta cervos selvagens nos EUA.
Nada garante, portanto, que o próprio ambiente (espécies silvestres) sirva como repositório permanente de príons, que poderiam daí voltar a infectar animais de interesse para a economia humana, ou que a doença se propague e ameace populações silvestres já em risco de sobrevivência. É o campo por excelência da "conservation medicine".
Seria bom se fossem só as TSEs, mas há outras doenças ameaçadoras saltando do ambiente para o homem, conhecidas como EIDs (da abreviação em inglês para doenças infecciosas emergentes). Pense na Aids (chimpanzés), na Sars (civetas), no vírus do Oeste do Nilo, que chegou às Américas provavelmente num mosquito viajando de avião e hoje infecta uma gama de animais silvestres -inclusive aves migratórias, que podem perfeitamente trazer o vírus ao Brasil.
Aliar medicina e conservação parece mesmo uma idéia sensata.


O jornalista Marcelo Leite teve a hospedagem em Cambridge paga pela Fundação Nieman
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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