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São Paulo, terça-feira, 23 de setembro de 2003

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TECNOLOGIA

Cientistas da USP fazem, com peças de chuveiro e carro, aparelhos sensíveis que já renderam 20 publicações

Químicos reciclam pedaços do cotidiano

José Nascimento/Folha Imagem
O químico da USP Lúcio Angnes retira ouro de CD para pesquisa


MARCUS VINICIUS MARINHO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

A figura do inventor tipo Professor Pardal pouco tem a ver com o dia-a-dia da pesquisa científica, mas um grupo da USP contraria essa tendência tradicional construindo aparelhos caros de análise química de forma artesanal e com objetos do cotidiano, como relógios e chuveiros.
No Laboratório de Automação e Instrumentação Analítica (Laia), os químicos Lúcio Angnes, Claudimir do Lago e Ivano Gutz desenvolvem uma linha de pesquisa que não resulta em instrumentos baratos, mas também no aprimoramento do que já existe. "O objetivo não é só baixar o custo, mas também melhorar o que já está aí", diz Lago, 39.
As invenções do Laia renderam cerca de 20 artigos nos últimos três anos, incluindo quatro no "Analytical Chemistry" (pubs.acs.org/ac), a mais importante publicação científica de química analítica -o último no mês passado.
Os três Pardais brasileiros já fabricaram instrumentos importantes para análise química, entre eles um aparelho de eletroforese capilar. Esse dispositivo serve para separar as substâncias por meio de suas propriedades elétricas e analisá-las. Ingredientes: a trava elétrica de um Fiat Uno, uma resistência de chuveiro comum e uma ventoinha de computador.
Além da vantagem do preço, que se reduz a um décimo dos cerca de US$ 40 mil do equivalente comercial, o aparelho do laboratório tem a seu favor o fato de que seu limite de detecção -que se refere às quantidades mínimas de determinada amostra que um sensor detecta- é melhor que o da versão tradicional. O grupo já foi procurado por empresas como Hewlett-Packard e Petrobras, que se interessaram pelo produto.
As invenções, que começaram como um hobby, se multiplicaram com os anos. Isso levou os cientistas a construírem uma oficina de mecânica e eletrônica no Instituto de Química da USP.
"Ficamos com essa fama de inventores, que mudou até o perfil do aluno que nos procura para trabalhar aqui. Não são todos que aguentam", diz Angnes, 47.

"MacGyver"
A fama gerou certa dose de folclore ao redor do grupo na USP. "Antigamente vinha o pessoal da faxina aqui, meio sem jeito, e nos dizia: "Olha, tem um problema no meu rádio, o senhor não pode dar uma olhada?" ", conta Angnes.
Um aluno de iniciação científica, por sua vez, disse brincando ser orientando do "professor MacGyver", em alusão ao personagem da série de TV que fazia bombas e fugia de qualquer lugar usando clipes de papel, chiclete e outros objetos inusitados.
A comparação pode parecer exagerada, mas o fato é que uma rápida visita ao Laia revela uma série de adaptações artesanais. Há um coletor de água de chuva feito com garrafão de bebedouro e com uma peça de furadeira. Há também um fotodigestor -que remove substâncias orgânicas indesejáveis das amostras- construído com uma lâmpada comum de rua. Isso para não falar de instrumentos adaptados com um condutor elétrico de ouro retirado de CDs regraváveis comerciais.
O projeto mais ambicioso, no entanto, tem a ver com a manipulação de líquidos em pequenos tubos conhecidos como microcanais, que têm numerosas aplicações, como a análise de sangue a partir de uma única gota.
O segredo para a construção do sistema é engenhoso: os inventores imprimem figuras em preto e branco, com uma impressora jato de tinta, em duas transparências de acetato, dessas usadas com retroprojetor. Após um processo de colagem, entre as duas folhas há sulcos nas partes brancas das figuras, pelos quais o líquido pode fluir em quantidades diminutas.
Apesar de tantas invenções, quase nada foi patenteado. "Publicamos, e agora usa quem quiser", diz Gutz, 52.


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