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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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GRUPO DE PESQUISADORES NO BRASIL E NOS EUA DEDICADOS À QUESTÃO AMAZÔNICA DEFENDE "REDUÇÃO COMPENSADA", UM MECANISMO DE REMUNERAÇÃO PARA PAÍSES TROPICAIS QUE DIMINUAM DESMATAMENTO E CONTRIBUAM ASSIM PARA MITIGAR EFEITO ESTUFA

PROPOSTA PARA MANTER A FLORESTA EM PÉ

Paulo Whitaker - 07.out.1999/Reuters
Sequência invertida mostra derrubada de uma árvore na floresta amazônica (a ordem correta das imagens vai da direita para a esquerda)


Márcio Santilli
Paulo Moutinho
Stephan Schwartzman
Daniel Nepstad
Lisa Curran
Carlos Nobre

especial para a Folha

O clima da Terra está mudando. Está ficando mais quente e imprevisível, pelas emissões exageradas de gases como o dióxido de carbono (CO2), que aumentam o chamado efeito estufa. Estima-se que, se não houver redução na emissão desses gases, em 2100 a temperatura da Terra terá subido de 3C a 5C, o suficiente para causar grandes catástrofes ambientais e sociais.
Cerca de 75% das emissões globais provêm da queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão mineral e gás natural), principalmente nos países industrializados. Sobre eles, e de maneira justa, tem sido depositada a maior parte da responsabilidade pela mudança do clima e pelos custos relacionados para sua mitigação. No entanto, alguns países em desenvolvimento, como China e Índia, também emitem quantidade significativa de gases-estufa, pois mantêm uma matriz energética baseada na queima de petróleo e carvão mineral. E os outros 25% das emissões globais? Eles se devem, principalmente, ao desmatamento tropical. Nesse quesito, o Brasil é campeão. Somente na Amazônia brasileira, o desmatamento é responsável por um volume de emissões (180 milhões a 200 milhões de toneladas de carbono por ano, ou MtC/ano) duas vezes maior que o produzido pela queima de combustível fóssil no país inteiro (70-90 MtC/ano). As emissões amazônicas equivalem a quase a metade do volume total que os países desenvolvidos devem reduzir (cerca de 500 MtC/ano) com a entrada em vigor do Protocolo de Kyoto, tratado internacional firmado em 1997 para tentar conter a mudança climática global. Isso tudo sem incluir as emissões oriundas dos incêndios florestais nos trópicos, que são tão elevadas quanto aquela produzida pelo desmatamento (em média 250 MtC/ano). Porém, lamentavelmente, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática (UNFCCC, na abreviação em inglês) e o Protocolo de Kyoto ainda não dispõem de instrumentos para lidar com essa fração menor, mas significativa, das emissões globais. O MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo), por exemplo, permite aos países industrializados alcançarem suas metas de redução de emissões por meio do financiamento de projetos nos países em desenvolvimento, substituindo o uso de energia mais poluente ou promovendo o sequestro de carbono da atmosfera por meio de plantação de árvores. Pelos acordos firmados para o primeiro período de vigência do protocolo (2008-2012), ficou excluída a redução de emissões via diminuição do desmatamento.


O desmatamento na Amazônia é responsável por um volume de emissões duas vezes maior que o produzido pela queima de combustível fóssil


Mecanismo novo
Se houver uma mobilização política da comunidade internacional, ainda há tempo para suprir a falta de instrumentos no protocolo para lidar com essa quarta parte do problema climático, adotando um sistema de "redução compensada". Aqui propomos um novo mecanismo, pelo qual os países em desenvolvimento que detêm florestas tropicais, como o Brasil e a Indonésia, possam receber compensação posterior, caso consigam reduzir suas taxas de desmatamento em relação aos níveis apresentados durante os anos 1990, que poderiam servir como linha de base. Aqueles que comprovassem a redução do desmatamento durante um determinado período de compromisso, em relação à sua linha de base, seriam autorizados a emitir certificados de carbono, semelhantes aos de "Reduções Certificadas das Emissões do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo", que poderiam ser vendidos a outros governos ou a investidores privados. Os certificados resultantes dessa compensação seriam imediatamente comercializáveis, mas apenas uma parte deles estaria disponível para compensar as emissões de países industrializados já no período subsequente, enquanto os restantes serviriam para o período seguinte. Assim, seriam maiores os benefícios para o clima mundial em comparação com os certificados de redução até agora propostos, que cobrem imediatamente as reduções de emissões não realizadas diretamente pelos países desenvolvidos, numa contabilidade que seria neutra para o clima. Já os países em desenvolvimento que, em vez de reduzir, aumentem o desmatamento num primeiro período assumiriam a obrigação de reduzir esse adicional no período seguinte, sem a compensação, que voltaria a ocorrer quando as suas taxas de desmatamento ficassem novamente abaixo da linha de base.

Atrair investidores
Os países em desenvolvimento que necessitassem de financiamento prévio para pôr em prática ou melhorar os seus programas de redução do desmatamento poderiam negociá-los com instituições financeiras bilaterais ou multilaterais, ou com o setor privado, por intermédio de bônus resgatáveis em troca dos certificados que deveriam ser posteriormente conquistados. O atrativo para os investidores seria a perspectiva de créditos de carbono certificados de alta qualidade, com vantagens comparativas do ponto de vista ambiental, pois, além da redução do desmatamento, estariam protegendo a biodiversidade e os recursos hídricos e, em muitos casos, melhorando a qualidade de vida dos habitantes da floresta.
As condições atuais favorecem o desmatamento, pois não oferecem vantagem para quem o reduz. Hoje, a floresta em pé tem muito menos valor econômico do que a agricultura ou a exploração predatória de madeira, enquanto a proteção florestal implica alto custo e pouco retorno econômico. Já o princípio da "redução compensada" remuneraria países e empresas que investissem na preservação florestal, gerando um valor econômico para a floresta em pé.
Nesse sentido, o seu caráter intergovernamental e global, diferentemente da abordagem de projetos avulsos prevista no MDL do Protocolo de Kyoto, tornaria a redução do desmatamento perfeitamente verificável com o uso de imagens de satélites. Além disso, os países que recebessem essa compensação poderiam utilizar os recursos com plena soberania, segundo estratégias nacionais próprias, que poderiam beneficiar Estados, municípios, empresas, comunidades, institutos de pesquisa e outras organizações que contribuíssem de forma consistente para alcançar as reduções de emissões.
Um tal mecanismo viabilizaria um fluxo adequado de recursos para programas voltados para a fiscalização e implementação da legislação ambiental ou, ainda, para o apoio às alternativas econômicas que não gerassem um desmatamento extensivo, o que tenderia a realimentar a queda da taxa de desmatamento. Poderia também fomentar o desenvolvimento de novos sistemas de controle, a exemplo do licenciamento rural, cuja eficiência fosse verificável por tecnologia remota (satélites), protegendo-os de pressões e manipulações políticas.
Poderia também viabilizar outras iniciativas de cunho socioeconômico que valorizassem os serviços ambientais prestados pela floresta em pé, como o programa de crédito chamado Proambiente, voltado para oferecer incentivos aos pequenos agricultores que desenvolvessem atividades que evitem o desmatamento, como os consórcios agroflorestais. Poderia ainda, por fim, financiar operações conjuntas dos órgãos policiais, fundiários e ambientais que se antecipassem à implantação de infra-estrutura (especialmente asfaltamento de estradas), evitando a indução ao aumento do desmatamento nessas áreas, ou criação, implantação e manutenção de unidades de conservação.
Portanto, a redução compensada permitiria que países em desenvolvimento participassem de forma muito mais efetiva dos esforços globais pela redução das emissões de gases-estufa e pela reversão da grave situação que afeta o clima mundial. Incentivaria a proteção das florestas, inclusive viabilizando os meios para enfrentar os impactos que elas já sofrem em consequência da mudança climática, como a perda de umidade. Combinaria a redução de emissões com outras vantagens ambientais efetivas e com a melhoria das condições de vida de populações excluídas dos mecanismos tradicionais de crédito e das oportunidades de desenvolvimento.

Márcio Santilli (ISA-Instituto Socioambiental); Paulo Moutinho (Ipam-Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia); Stephan Schwartzman (Environmental Defense, EUA); Daniel Nepstad (Ipam e Woods Hole Research Center, EUA); Lisa Curran (Universidade Yale, EUA); e Carlos Nobre (CPTEC/Inpe-Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos/Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais)


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