São Paulo, domingo, 24 de abril de 2005

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Ciência em Dia

Viver, pensar, falar

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Tempos memoráveis, aqueles. Em 1968, pouco antes de explodir em Paris a revolta estudantil de maio, a TV francesa organizou um debate imperdível. Juntos, discutindo as fronteiras entre natureza e cultura: o biólogo François Jacob, o lingüista Roman Jakobson, o antropólogo Claude Lévi-Strauss e o geneticista Philippe L'Héritier.


A metáfora do gene como informação sobreviveu sem responder à questão da significação


Na falta de máquina do tempo, o jeito é mover mundos e fundos para obter cópias das duas edições da extinta revista "Les Lettres Françaises", datadas de 14 e 21 de fevereiro, em que o debate foi reproduzido sob o título "Vivre et Parler" (viver e falar). Vale uma missa, diria Bento 16.
O catalisador do encontro na TV parece ter sido Jacob. Numa época em que a intelectualidade francesa ainda estava fascinada com a teoria da informação de Claude Shannon e Norbert Wiener, Jacob havia feito com Jacques Monod, na década anterior, uma série de descobertas sobre a regulação genética da fabricação de enzimas que lhes valeria o Nobel em Medicina de 1965, com Michel Lwoff. Batizado como modelo do operon, ele embutia paralelos com a descrição formal do "comportamento" de máquinas consagrado na cibernética.
Iniciado o programa televisivo, o entrevistador Michel Tréguer faz as apresentações e a seguir dá a palavra a Jacob, para que explique o propósito da reunião de intelectuais tão díspares. O biólogo entra de sola no tema, afirmando que descobertas das duas décadas anteriores sobre o funcionamento de células revelavam pontos em comum com a sociedade e a linguagem humanas. Ou seja, sistemas de comunicação, de transmissão de informação biológica (genética), que estariam na base do fenômeno da organização.
Informação dentro das células? Moléculas que se comunicam? Hoje essas analogias se tornaram opacas, de tão corriqueiras, mas não é difícil imaginar um francês mediano dos anos 1960 bufando diante da televisão. Eram idéias realmente provocadoras para a época. E ainda deveriam ser.
O pior ainda estava por vir. Quando a palavra chega a Jakobson, o caldo entorna de vez. Mais que uma analogia, o lingüista de origem russa, que conviveu com Wiener em Cambridge (EUA), dá um passo adiante e vislumbra relações mais profundas entre estruturas lingüísticas e biológicas. Mais exatamente, entre o que chama de "hereditariedade verbal" (transmissão de conteúdos culturais pela língua) e a hereditariedade propriamente dita (transmissão de características genéticas pelo DNA). O russo não disse, mas poderia ter dito: "O DNA é mãe de todas as línguas". Isto ele disse: "É a mesma arquitetura, são os mesmo princípios de construção".
Lévi-Strauss participou ativamente do debate. Mas tudo o mais que possa ter dito silencia diante da enormidade do problema que levantou para a analogia desenfreada: e a questão da significação? Em outras palavras: faz sentido falar em informação quando não há sujeitos emissores nem receptores?
A metáfora do gene como informação sobreviveu a mais de três décadas sem responder a essa questão. Talvez porque ninguém mais debate essas coisas na TV. Em lugar nenhum.

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