São Paulo, terça-feira, 24 de dezembro de 2002

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NEUROLOGIA

Biólogo explica aparições sobrenaturais e "experiências fora do corpo" como fenômenos gerados pelo cérebro

Pesquisador suíço vive à caça de fantasmas

Peter Brugger/Arquivo pessoal
Imagem enviada pelo biólogo e caça-fantasma Peter Brugger


SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Ele não dirige um velho Cadillac, não carrega uma mochila de prótons nem possui detectores de energia psicocinética, ectoplasma e esquisitices afins -mas Peter Brugger é um caça-fantasma.
Diferentemente de suas contrapartes fictícias do cinema, esse suíço de 45 anos não acredita em todo tipo de aparição fantasmagórica -ao menos não como manifestações do mundo sobrenatural. Para Brugger, fantasma é coisa que colocam na sua cabeça.
"É claro que sou um caça-fantasma!" -exclama, com vontade. "Só que persigo fantasmas no único lugar em que eles assombram: no cérebro humano."

Experiências reais
Ao longo de mais de duas décadas, Brugger tem estudado fenômenos que outros pesquisadores temem confrontar, diante da possibilidade de serem rotulados como adoradores do paranormal e da credulidade. Para ele, fugir dessas questões equivale a negar toda uma gama de experiências humanas inegavelmente reais.
"Claro, experiências fora do corpo e "doppelgängers" merecem ser tratados em separado de crenças sobre alienígenas, Yeti ou o Pé-Grande", ele diz. "São experiências conhecidas pela humanidade desde suas origens, porque são uma consequência de ter um corpo -que pode ser fracionado, duplicado ou até multiplicado."
Brugger trabalha no Hospital da Universidade de Zurique, no departamento de neurologia. Em abril próximo, ele vai assumir o comando da unidade de neuropsicologia. O serviço diário no hospital ofereceu alguns lampejos de como entender fenômenos antes vistos como sobrenaturais.
As visões de "doppelgängers" (um duplo da pessoa) ou as chamadas experiências fora do corpo, em que o indivíduo tem a sensação de que sua consciência está num lugar diferente de onde sua entidade física estaria, podem não ser essencialmente diferentes de um paciente que "sente" seu braço mesmo depois de ter sido amputado, pensou o cientista.
"Cerca de 50% do meu trabalho é em tarefas clínicas", diz Brugger. Com base no estudo envolvendo pacientes, ele conseguiu engendrar uma explicação natural para as aparições de "doppelgängers".
"Um "doppelgänger" é o resultado de uma desintegração da grande rede neural que oferece a sensação de nosso próprio corpo como algo que contém o "eu" e o distingue de objetos e pessoas no espaço externo", explica Brugger.
Se esse sistema cerebral sofre alguma espécie de pane, a barreira sensorial que separa a pessoa de todo o resto se dilui, e o cérebro oferece sensações falsas de que essa pessoa também faz parte da região antes mentalmente catalogada como o "mundo exterior".
"A diferença entre "doppelgängers" e experiências fora do corpo é que as pessoas que vêem um "doppelgänger" ainda se sentem no corpo, enquanto numa OBE ["experiência fora do corpo", na sigla em inglês] o observador parece ser "projetado" para o espaço extracorporal", continua. "Nós ainda não entendemos como essa ilusão funciona nem quais mecanismos precisos levam alguém a visualizar o ambiente de uma ilusória posição fora do corpo."
Aparições fantasmagóricas também seriam cartas do mesmo naipe, embora a variedade dos fenômenos dificulte apontar uma explicação unificadora. "Ver um fantasma é uma experiência heterogênea, e os processos cerebrais envolvidos dependem de a aparição ser um ente conhecido da pessoa, de quão "substanciais" ou transparentes os fantasmas parecem ser, e de muitos outros detalhes fenomenológicos."

Importância social
Não é mera curiosidade entender os processos mentais que levam pessoas a experimentarem sensações supostamente sobrenaturais. "Há uma relevância social para tudo isso, é claro", diz Brugger. "Certamente faz diferença se as sociedades localizam seus fantasmas no ambiente ou se elas mesmas se consideram o berço de eventos fantasmagóricos. Sabendo que a própria pessoa é a criadora das assombrações também pode diminuir o medo de forças "paranormais" e permitir que ela reconheça sua normalidade."
Ainda faltam muitas peças no quebra-cabeça, mas o pesquisador sente estar no caminho certo. E aproveita para alfinetar os fãs de explicações e metodologias mais, por assim dizer, freudianas. "Ninguém atualmente pode explicar esses fenômenos com detalhes, mas pelo menos temos uma moldura para experimentação. O que é sempre melhor que especulações criadas atrás de uma mesa e mais útil para os pacientes do que deitá-los num sofá para perguntar sobre eventos de infância."
Além disso, o trabalho pode salvar vidas. Em alguns processos de alucinação envolvendo "doppelgängers", o duplo aparece como uma ameaça ao indivíduo. "Em casos patológicos, especialmente quando enfrentando um "doppelgänger" agressivo que ameaça a vida de um paciente, reconhecer a si mesmo como o agente das interações fantasmagóricas pode evitar que uma pessoa pule da janela num ato desesperado para escapar do "outro" ", diz Brugger.
Com toda essa caça ao paranormal, alguém poderia pensar que Brugger se tornou uma espécie de assombração para sua própria família. Não é o caso, parece. "Se essa fosse minha única obsessão, talvez pudesse entediar minha mulher e meus três filhos. Mas, felizmente, fantasmas e "doppelgängers" são apenas uma das coisas que me fascinam. Outra obsessão está ligada à aleatoriedade. Aqui o impacto na minha vida privada é muito mais concreto: temos escolhido o lugar para nossas férias nos últimos tempos atirando uma agulha num mapa!"


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