São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2007

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+ Marcelo Leite

Bobagens amazônicas

Sem dar exemplos, Helio Jaguaribe dá curso a teoria da conspiração

A inda que publicado por esta Folha na segunda-feira de Carnaval, o artigo "A perda da Amazônia", do sociólogo Helio Jaguaribe, não pode e não deve ser tomado sob o prisma da derrisão.
Intelectual respeitado, membro da Academia Brasileira de Letras, secretário (ministro) de Ciência e Tecnologia durante o governo Collor, Jaguaribe tem muitos ouvintes. Entre eles, os da Rede CBN de rádio, que o entrevistou em seguida. Jaguaribe afirma que 59% do território nacional estão em "absoluto abandono". Para o "decano emérito do Instituto de Estudos Políticos e Sociais", ocorre ali uma "acelerada desnacionalização, em que se conjugam ameaçadores projetos por parte de grandes potências para sua formal internacionalização com insensatas concessões de áreas gigantescas por parte do governo -correspondentes, no conjunto, a cerca de 13% do território nacional- a uma ínfima população de algo como 200 mil índios".
Sem citar um só exemplo concreto, Jaguaribe dá curso a uma teoria conspiratória de fundo militar-nacionalista. Para ele, organizações religiosas -ingenuamente, no caso da Igreja Católica, ou interessadamente, no caso de missionários protestantes estrangeiros- trabalham com o objetivo de "criar condições para a formação de "nações indígenas" e proclamar, subseqüentemente, sua independência -com o apoio americano". De um intelectual de seu porte no campo das humanidades, seria de esperar que citasse também algum colega antropólogo em apoio à tese, não só o "Jornal do Brasil" e a Abin, Agência Brasileira de Inteligência (que não se perca pelo nome). Ao propagar essa visão simplista da mobilização de organizações indígenas pelo reconhecimento oficial de suas terras, com ou sem a ajuda de ONGs nacionais e estrangeiras, Jaguaribe ofende uma legião de brasileiros tão ou mais patriotas que ele.
No rádio, o sociólogo chamou de "criminosa" a política indigenista feita atualmente. Ela tem defeitos, decerto, mas não pelas supostas razões apontadas pelo cientista social. Jaguaribe se rebaixa até o nível do senso comum quando compara os 13% do território nacional reconhecidos como terras indígenas (TIs) a "uma ínfima população de algo como 200 mil índios" (na realidade, são 480 mil almas nas TIs, segundo cômputo do Instituto Socioambiental-ISA publicado no volume "Povos Indígenas no Brasil 2001/ 2005").
Em primeiro lugar, os índios têm direito líquido e certo a essas terras. Sua extensão guarda relação direta com o modo de vida que conseguiram preservar até o século 21, apesar da dizimação a que foram submetidos desde o 16. Esse direito foi consagrado pela Constituição de 1988 (artigo 231 do texto, vale a pena ler), que o cientista político ignora em seu texto e da qual deriva a política indigenista vigente por ele impugnada. Em segundo lugar, além da garantir a sobrevivência de 225 etnias falantes de 180 línguas, as TIs representam também um dos mais eficientes meios de preservação da floresta amazônica.
Ainda segundo o levantamento do ISA, mesmo não sendo propriamente unidades de conservação (UCs), elas têm índice de desmatamento de apenas 1,14%, contra 1,47% das UCs federais e 7,01% nas UCs estaduais. Quem contesta o tamanho das terras indígenas no Brasil deveria dar-se ao trabalho de questionar, caso a caso, os laudos antropológicos produzidos para demarcá-las. Render-se a uma aparente desproporção não é atitude aceitável para um cientista social.


MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático"Amazônia, Terra com Futuro" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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