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+ Marcelo Leite
Bobagens amazônicas
Sem dar exemplos, Helio Jaguaribe
dá curso a teoria
da conspiração
A
inda que publicado por esta
Folha na segunda-feira de Carnaval, o artigo "A perda da
Amazônia", do sociólogo Helio Jaguaribe, não pode e não deve ser tomado
sob o prisma da derrisão.
Intelectual respeitado, membro da
Academia Brasileira de Letras, secretário (ministro) de Ciência e Tecnologia durante o governo Collor, Jaguaribe tem muitos ouvintes. Entre eles, os
da Rede CBN de rádio, que o entrevistou em seguida.
Jaguaribe afirma que 59% do território nacional estão em "absoluto
abandono". Para o "decano emérito do
Instituto de Estudos Políticos e Sociais", ocorre ali uma "acelerada desnacionalização, em que se conjugam
ameaçadores projetos por parte de
grandes potências para sua formal internacionalização com insensatas
concessões de áreas gigantescas por
parte do governo -correspondentes,
no conjunto, a cerca de 13% do território nacional- a uma ínfima população
de algo como 200 mil índios".
Sem citar um só exemplo concreto,
Jaguaribe dá curso a uma teoria conspiratória de fundo militar-nacionalista. Para ele, organizações religiosas
-ingenuamente, no caso da Igreja Católica, ou interessadamente, no caso
de missionários protestantes estrangeiros- trabalham com o objetivo de
"criar condições para a formação de
"nações indígenas" e proclamar, subseqüentemente, sua independência
-com o apoio americano".
De um intelectual de seu porte no
campo das humanidades, seria de esperar que citasse também algum colega antropólogo em apoio à tese, não só
o "Jornal do Brasil" e a Abin, Agência
Brasileira de Inteligência (que não se
perca pelo nome). Ao propagar essa visão simplista da mobilização de organizações indígenas pelo reconhecimento oficial de suas terras, com ou
sem a ajuda de ONGs nacionais e estrangeiras, Jaguaribe ofende uma legião de brasileiros tão ou mais patriotas que ele.
No rádio, o sociólogo chamou de
"criminosa" a política indigenista feita
atualmente. Ela tem defeitos, decerto,
mas não pelas supostas razões apontadas pelo cientista social.
Jaguaribe se rebaixa até o nível do
senso comum quando compara os 13%
do território nacional reconhecidos
como terras indígenas (TIs) a "uma ínfima população de algo como 200 mil
índios" (na realidade, são 480 mil almas nas TIs, segundo cômputo do Instituto Socioambiental-ISA publicado
no volume "Povos Indígenas no Brasil
2001/ 2005").
Em primeiro lugar, os índios têm direito líquido e certo a essas terras. Sua
extensão guarda relação direta com o
modo de vida que conseguiram preservar até o século 21, apesar da dizimação a que foram submetidos desde
o 16.
Esse direito foi consagrado pela
Constituição de 1988 (artigo 231 do
texto, vale a pena ler), que o cientista
político ignora em seu texto e da qual
deriva a política indigenista vigente
por ele impugnada.
Em segundo lugar, além da garantir
a sobrevivência de 225 etnias falantes
de 180 línguas, as TIs representam
também um dos mais eficientes meios
de preservação da floresta amazônica.
Ainda segundo o levantamento do
ISA, mesmo não sendo propriamente
unidades de conservação (UCs), elas
têm índice de desmatamento de apenas 1,14%, contra 1,47% das UCs federais e 7,01% nas UCs estaduais.
Quem contesta o tamanho das terras indígenas no Brasil deveria dar-se
ao trabalho de questionar, caso a caso,
os laudos antropológicos produzidos
para demarcá-las. Render-se a uma
aparente desproporção não é atitude
aceitável para um cientista social.
MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático"Amazônia, Terra com Futuro" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em
Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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