São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

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+ciência

Biografia de jornalista americano tenta desvendar a mente do físico britânico por meio de escritos originais

Isaac Newton ao pé da letra

Stefan Rousseau - 23.ago.2000/France Presse
Anotações do físico e matemático Isaac Newton na casa de leilão Sotheby's, em Londres


Salvador Nogueira
da Reportagem Local

Entrar na cabeça de um homem e decifrar seus pensamentos, por si só, não é uma tarefa muito fácil. Também não ajuda nada se esse homem tiver vivido e morrido 400 anos antes de você ter nascido. Facilita um pouco o fato de ele ter sido sir Isaac Newton (1642-1727).
Trocando em miúdos, essa é a alma do esforço empreendido pelo jornalista americano James Gleick, na tentativa de retratar a vida e a obra do cientista britânico que revolucionou o estudo da física e da astronomia. O resultado, intitulado simplesmente "Isaac Newton", acaba de chegar ao Brasil, em lançamento promovido pela Companhia das Letras.
Consagrado como repórter e editor do diário "The New York Times", onde trabalhou por dez anos, Gleick faz uso de algumas das principais características do texto jornalístico em seu novo livro: poder de síntese e foco são duas das que aparecem com maior proeminência.
Seguramente, sir Isaac é uma das figuras cujas vidas foram mais vezes relatadas na história da ciência e da divulgação científica. E não é de hoje que ele é reverenciado -desde seus primeiros feitos, o físico foi idolatrado por seus pares no Reino Unido e fora dele. Se por um lado essa celebridade produziu farta documentação para o estudo do cientista, por outro traz um problema para cada novo biógrafo. De quantos modos possíveis se pode contar a mesma vida? Um problema digno da mente de Newton, sem sombra de dúvida.
A solução encontrada por Gleick se traduziu no patente esforço para perscrutar os pensamentos de seu biografado, revirando para isso todos os textos, comentários e anotações originais em que pôde pôr as mãos. De forma por vezes sutil, Gleick tenta reconstruir o processo em que cada palavra foi escrita, como quando o inglês ainda era um simples aluno do Trinity College.
"No segundo ano, depois de encher o começo e o fim de seu caderno de anotações com Aristóteles, Newton começou uma nova seção: Questiones quaedam philosophicae -algumas questões filosóficas. Ele deixou a autoridade de lado. Mais tarde voltou a essa página e acrescentou uma epígrafe: a justificativa de Aristóteles para discordar de seu professor. Aristóteles dissera: "Platão é meu amigo, mas a verdade é minha maior amiga". Newton inseriu o nome de Aristóteles na seqüência: Amicus Plato amicus Aristoteles amica veritas. Ele criou um novo começo."
A obsessão pela documentação original, apesar de se manifestar positivamente ao longo da narrativa, traz ao livro um efeito colateral indesejado: 38 páginas cobertas por notas de referência. Somando-se a isso outras 28 de bibliografia e índice remissivo, restam apenas cerca de 190 para o corpo principal da obra, de um livro de quase 300. Seria plenamente justificável no caso de um trabalho acadêmico argumentativo e profundo. Mas Gleick não parece ter desenvolvido uma tese ou uma idéia própria e original a respeito de Newton. Seu objetivo, pura e simplesmente, foi o de contar uma história, da maneira mais rica e atraente possível.
E isso ele consegue fazer muito bem. O próprio biografado ajuda, com sua incrível e obscura trajetória, percorrida ao longo de 83 anos. Apesar da reclusão, Newton foi um personagem extremamente ativo durante a vida, travando uma duradoura guerra de palavras (e muitas vezes de silêncio) com o também cientista Robert Hooke (1635-1703), que fez as primeiras observações microscópicas e o acusava, injustamente, de plagiar sua teoria sobre a natureza da luz. Mais discutível foi o debate pela paternidade do cálculo, travado entre Newton e Gottfried Wilhelm Leibnitz (1646-1716). Nessa, o inglês ganhou "no grito", por seu prestígio, poder e influência na Royal Society.
Ao longo do livro, o jornalista revela as nuances de um personagem controverso e incongruente, que espantou o mundo com a natureza mecanicista dos movimentos celestes e ao mesmo tempo, de forma secreta, nutriu profundo interesse pelas chamadas "ciências ocultas", por alquimia e por obsessivos estudos bíblicos.
Depois de ter enfrentado a teoria do caos e a vida do físico americano Richard Feynman (1918-1988), em seus dois livros anteriores sobre ciência, Gleick voltou a revelar seus talentos no destrinchamento dos complexos detalhes envolvidos nas descobertas científicas. Ele não foge aos detalhes e, embora não os desenvolva por completo, não deixa o leitor em dúvida sobre o que Newton tentava fazer e o que o levou a estudar óptica (a ponto de introduzir um estilete entre sua pálpebra e seu globo ocular para experimentar ilusões da visão), a trabalhar com infinitesimais, culminando com o cálculo, e a estabelecer as leis físicas da dinâmica e da gravitação.
Apesar da complexidade dos temas, o tratamento é adequado ao público leigo e Gleick nunca perde de vista a noção de que o foco de sua narrativa é eminentemente histórico, não matemático ou científico.
Para terminar, o jornalista -como não poderia deixar de ser- deixa seu leitor com a sensação de que Newton e suas descobertas são de fato imortais. Não se trata de superar a física newtoniana (que aliás tem elementos extremamente atuais, como a noção de que a luz pode ser particulada), nem de substituí-la pelo novo universo de Einstein e da mecânica quântica, mas de apreciar os incríveis saltos mentais executados por esse cientista que ousou não impor fronteiras ao alcance de seu pensamento.
Apesar de refutar a teoria dos movimentos planetários aventada por René Descartes (1596-1650), Newton reafirmou de forma soberba sua principal herança: o uso da racionalidade para decifrar o mundo. E Gleick permite que o leitor aprecie, num texto leve e agradável, o contexto dessa imensa contribuição.


Isaac Newton - Uma Biografia de James Gleick
272 págs. R$ 41,50
Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 32, CEP 04532-002, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500)



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