São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

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Ciência em Dia

O massacre dos cintas-largas

Marcelo Leite
editor de Ciência

Mesmo as pessoas que alimentem uma grande simpatia pela causa indígena estão moralmente obrigadas a se revoltar com a morte de dezenas de garimpeiros de diamantes por índios cintas-largas na reserva Roosevelt (RO). Cabe apenas um qualificativo: massacre.
Essa tem sido a palavra empregada, ao longo da história, para descrever as mortes coletivas de índios no Brasil. Há mesmo razões para defender que seja chamada de "genocídio" a redução de sua população da casa dos milhões, no Descobrimento, para a de poucas centenas de milhares, no século 20. Mas não há por que nem como evitar falar em massacre quando as mortes presentes são perpetradas pelas vítimas históricas.
Uma história de sofrimentos generalizados não pode justificar atos particulares de selvageria atual, seja de que lado for. A situação e o conflito entre índios e garimpeiros naquele ermo de Rondônia ainda demandarão semanas, meses ou quiçá anos para ser explicados e entendidos, mas parece óbvio que os donos da terra de onde os diamantes são extraídos -ilegalmente- estavam tentando manter o controle sobre essa fonte de riqueza, e não realizando tipo algum de justiça histórica, ou algo que o valha.
Estranha, portanto, que o presidente da Funai tenha lamentado apenas protocolarmente a morte trágica daqueles pobres coitados. Decerto eles terão sabido da ilegalidade e do risco de suas ações; também é provável que tenham tentado usurpar parte da renda reservada aos cintas-largas, num desses acordos precários que costumam ser firmados à margem da lei e do Estado onde eles são pouco mais que uma piada de mau gosto. Nada disso, porém, faz com que mereçam aquela morte indigna no mato.
Se for possível identificar os responsáveis, o senso de justiça manda que sejam julgados e punidos por esses atos. A defesa da terra e de seus recursos pode quando muito servir de atenuante, mas cabe aos profissionais do direito avaliar se isso é juridicamente sustentável.
O eventual envolvimento dos indígenas no contrabando de diamantes também tem de ser apurado e esclarecido, assim como o de não-índios que lucram com a atividade, muito ou pouco. Outra coisa a avaliar é se havia uma disputa entre os próprios índios quanto à exploração dos diamantes. Outra, ainda, é se eles tinham os meios de impedir de forma não-violenta a invasão de suas terras e o garimpo, ou se houve omissão de instituições federais na garantia de seus direitos. Mesmo que tenha havido, como parece ser o caso, é preciso repetir que isso tampouco poderia justificar as mortes.
Por fim, se os assassinos vierem um dia a ser julgados, é preciso que o sejam apenas pelos atos que tenham cometido, e não por ainda serem índios. São de pasmar o preconceito e a ambivalência que ainda vicejam na sociedade, mesmo entre pessoas que se consideram esclarecidas, sobre a questão indígena.
Ora os índios são desprezados pelo desejo de permanecerem índios, "puramente" índios (como se isso fosse possível), ora pelo desejo de aculturação, ou ao menos pelo desejo de assimilação daquilo que de melhor a "civilização" tem para lhes oferecer -suas máquinas e tecnologias.
Para o senso comum, índio tem de usar cocar e borduna, de preferência num território exíguo, porque afinal os não-índios empreendedores precisam de terra para grilar e queimar. Não pode andar de caminhonete. Importada, nem pensar.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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