São Paulo, domingo, 25 de maio de 2008

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A fulguração da barbárie

Conflito na terra indígena Raposa/Serra do Sol remonta a uma antiga estrutura de discriminação e violência

NÁDIA FARAGE
PAULO SANTILLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A história, disse o filósofo Walter Benjamin em sua sexta tese, é o relampejar de uma reminiscência em um momento de perigo. Estruturalista avant la lettre, a sexta tese enfatiza a analogia possível sob a aparente aleatoriedade do presente. Seguindo a lição de Benjamin, é o que o estudioso familiarizado com a historiografia de Roraima pode enunciar quanto ao atual conflito na terra indígena Raposa/ Serra do Sol: sua trágica analogia. Vamos a ela.
A ocupação portuguesa do vale do rio Branco, nos anos 70 do século 18, teve caráter marcadamente político-estratégico, por sua posição limítrofe às possessões espanholas e holandesas na Guiana. Sabe-se que, à exceção da fronteira com a Guiana Francesa (estabelecida pelo Tratado de Utrecht em 1713) os limites da Amazônia portuguesa permaneceram, por largo tempo, intencionalmente indefinidos, pois Portugal não possuía título para reclamá-los. Sob o princípio da posse de fato, que presidia o Tratado de Madrid, de 1750 -primeira tentativa, desde Tordesilhas, de delimitação das fronteiras coloniais luso-espanholas- ao ministério pombalino, se impôs povoar "todas as terras possíveis", contando com a população indígena como base de uma sociedade colonial. Neste quadro, foi construído no rio Branco o forte São Joaquim, e formaram-se aldeamentos indígenas seculares, sob a jurisdição daquela guarnição militar.
Em 1790, porém, após duas grandes revoltas da população, os aldeamentos no rio Branco foram desmantelados. Da experiência colonial, restariam no rio Branco três fazendas régias para criação de gado -uma imensa extensão de terras que chega ao Império como propriedade do Estado.

Fazendas nacionais
No quadro da disputa de fronteiras com a Guiana Inglesa -pendência que, em 1842, neutraliza o interflúvio Surumu-Tacutu-Cotingo e vem a ser diplomaticamente arbitrada apenas em 1904-, o Estado brasileiro veio a se interessar em descrever os limites das fazendas régias, ou, como foram conhecidas posteriormente, as fazendas nacionais do rio Branco. Em que pesem suas variações, em função de tomarem ou não em conta o território neutralizado, as diferentes descrições feitas no período projetam, sob propriedade do Estado, a extensão de terras do médio rio Branco até os limites com Venezuela e aqueles, indefinidos, com a Guiana Inglesa.
Em 1912, o Ministério da Fazenda legou as fazendas nacionais no rio Branco ao Ministério da Agricultura; em 1915, as fazendas nacionais já estavam sob a administração do Serviço de Proteção aos Índios. O esbulho das terras das fazendas nacionais -que eram também, lembremos, terras indígenas- iniciou-se, no entanto, com a colonização civil, que, paulatinamente, se instalou nos campos de Roraima a partir dos anos 70 do século 19. Tal esbulho foi favorecido pelo controverso artigo 64 da Constituição de 1891, que delegava jurisdição sobre as terras devolutas aos governos estaduais, mais sensíveis a pressões locais.

Território neutro
Com efeito, nas três primeiras décadas da República, o governo do Estado do Amazonas veio a expedir, sistematicamente, títulos de registro de terras, que incidiam sobre as fazendas nacionais no rio Branco. O Serviço de Proteção aos Índios a todos contraditou, sustentando os limites das três fazendas nacionais como patrimônio da União. Seus protestos, registrados no Diário Oficial e em relatórios administrativos, não surtiram efeito.
O exame das requisições de registro de terras no rio Branco entre 1893 e 1900, disponíveis no arquivo do Instituto de Terras da Amazônia, indica que a quase totalidade das posses existentes no vale do rio Branco incidia sobre a área dos rios Uraricoera, Amajari e margem direita do rio Branco. No mesmo período, apenas nove posses foram registradas no rio Tacutu e dez na margem esquerda do rio Branco. Relativamente intocados, portanto, encontravam-se a fazenda São Marcos, sede do Serviço de Proteção aos Índios, e o território neutro. A neutralização deste, ao que tudo indica, terá adiado a ocupação fundiária e, nesse sentido, temporariamente protegido o território indígena do esbulho por particulares.
Esse território, muito mais tarde, veio a ser reconhecido como a terra indígena Raposa/ Serra do Sol. As requisições de registro de terras deixam entrever, ainda, os expedientes usados na espoliação de terras indígenas. Número significativo de requisições contem documentos de compra espúria de terras de índios, assinados "a rogo", ou, apenas informavam que as terras requeridas continham "barracas" de "índios agregados" (o que valia dizer, por vezes, aldeias inteiras).

Pão, pano e pau
À diferença de outras regiões no país, onde a pecuária impôs a expulsão e extermínio da população indígena, a ocupação de terras no vale do rio Branco se fez acompanhar da arregimentação da população indígena, espoliada também em sua identidade étnica, para as camadas mais baixas da sociedade regional que nascia, profundamente marcada pela discriminação e pela violência interétnicas. Uma única exceção vem confirmar a regra: em 1894, um chefe Jaricuna requisita registro das terras de sua aldeia -como se posseiro fosse-, que lhe é negado, "em vista de ser ele lavrador e em pequena escala não tendo direito a requerer campos para criação em vista de não possuir gados".
Terra e gado, índices de riqueza, não caberiam a trabalhadores; a estes, segundo o adágio recolhido pelo viajante Henri Coudreau à boca dos fazendeiros, bastavam "pão, panno e páo". Ontem, como hoje, a fulguração da barbárie?


NÁDIA FARAGE, professora da Unicamp, é autora de "As Muralhas dos Sertões" (1991, Paz e Terra/ANPOCS)
PAULO SANTILLI, professor da Unesp, é autor de "Pemongon Patá" (2001, Edunesp) e outros artigos sobre história e etnografia de Roraima Antropólogos, já publicaram diversos outros artigos sobre história e etnografia de Roraima


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