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A fulguração da barbárie
Conflito na terra indígena Raposa/Serra do Sol remonta
a uma antiga estrutura
de discriminação e violência
NÁDIA FARAGE
PAULO SANTILLI
ESPECIAL PARA A FOLHA
A história, disse o filósofo Walter Benjamin em sua sexta
tese, é o relampejar
de uma reminiscência em um momento de perigo.
Estruturalista avant la lettre, a
sexta tese enfatiza a analogia
possível sob a aparente aleatoriedade do presente. Seguindo
a lição de Benjamin, é o que o
estudioso familiarizado com a
historiografia de Roraima pode
enunciar quanto ao atual conflito na terra indígena Raposa/
Serra do Sol: sua trágica analogia. Vamos a ela.
A ocupação portuguesa do
vale do rio Branco, nos anos 70
do século 18, teve caráter marcadamente político-estratégico, por sua posição limítrofe às
possessões espanholas e holandesas na Guiana. Sabe-se que, à
exceção da fronteira com a
Guiana Francesa (estabelecida
pelo Tratado de Utrecht em
1713) os limites da Amazônia
portuguesa permaneceram,
por largo tempo, intencionalmente indefinidos, pois Portugal não possuía título para reclamá-los. Sob o princípio da
posse de fato, que presidia o
Tratado de Madrid, de 1750
-primeira tentativa, desde
Tordesilhas, de delimitação
das fronteiras coloniais luso-espanholas- ao ministério
pombalino, se impôs povoar
"todas as terras possíveis", contando com a população indígena como base de uma sociedade colonial. Neste quadro, foi
construído no rio Branco o forte São Joaquim, e formaram-se
aldeamentos indígenas seculares, sob a jurisdição daquela
guarnição militar.
Em 1790, porém, após duas
grandes revoltas da população,
os aldeamentos no rio Branco
foram desmantelados. Da experiência colonial, restariam
no rio Branco três fazendas régias para criação de gado -uma
imensa extensão de terras que
chega ao Império como propriedade do Estado.
Fazendas nacionais
No quadro da disputa de
fronteiras com a Guiana Inglesa -pendência que, em 1842,
neutraliza o interflúvio Surumu-Tacutu-Cotingo e vem a
ser diplomaticamente arbitrada apenas em 1904-, o Estado
brasileiro veio a se interessar
em descrever os limites das fazendas régias, ou, como foram
conhecidas posteriormente, as
fazendas nacionais do rio Branco. Em que pesem suas variações, em função de tomarem ou
não em conta o território neutralizado, as diferentes descrições feitas no período projetam, sob propriedade do Estado, a extensão de terras do médio rio Branco até os limites
com Venezuela e aqueles, indefinidos, com a Guiana Inglesa.
Em 1912, o Ministério da Fazenda legou as fazendas nacionais no rio Branco ao Ministério da Agricultura; em 1915, as
fazendas nacionais já estavam
sob a administração do Serviço
de Proteção aos Índios. O esbulho das terras das fazendas nacionais -que eram também,
lembremos, terras indígenas-
iniciou-se, no entanto, com a
colonização civil, que, paulatinamente, se instalou nos campos de Roraima a partir dos
anos 70 do século 19. Tal esbulho foi favorecido pelo controverso artigo 64 da Constituição
de 1891, que delegava jurisdição
sobre as terras devolutas aos
governos estaduais, mais sensíveis a pressões locais.
Território neutro
Com efeito, nas três primeiras décadas da República, o governo do Estado do Amazonas
veio a expedir, sistematicamente, títulos de registro de
terras, que incidiam sobre as fazendas nacionais no rio Branco. O Serviço de Proteção aos
Índios a todos contraditou, sustentando os limites das três fazendas nacionais como patrimônio da União. Seus protestos, registrados no Diário Oficial e em relatórios administrativos, não surtiram efeito.
O exame das requisições de
registro de terras no rio Branco
entre 1893 e 1900, disponíveis
no arquivo do Instituto de Terras da Amazônia, indica que a
quase totalidade das posses
existentes no vale do rio Branco incidia sobre a área dos rios
Uraricoera, Amajari e margem
direita do rio Branco. No mesmo período, apenas nove posses foram registradas no rio Tacutu e dez na margem esquerda
do rio Branco. Relativamente
intocados, portanto, encontravam-se a fazenda São Marcos,
sede do Serviço de Proteção aos
Índios, e o território neutro. A
neutralização deste, ao que tudo indica, terá adiado a ocupação fundiária e, nesse sentido,
temporariamente protegido o
território indígena do esbulho
por particulares.
Esse território, muito mais
tarde, veio a ser reconhecido
como a terra indígena Raposa/
Serra do Sol. As requisições de
registro de terras deixam entrever, ainda, os expedientes
usados na espoliação de terras
indígenas. Número significativo de requisições contem documentos de compra espúria de
terras de índios, assinados "a
rogo", ou, apenas informavam
que as terras requeridas continham "barracas" de "índios
agregados" (o que valia dizer,
por vezes, aldeias inteiras).
Pão, pano e pau
À diferença de outras regiões
no país, onde a pecuária impôs
a expulsão e extermínio da população indígena, a ocupação
de terras no vale do rio Branco
se fez acompanhar da arregimentação da população indígena, espoliada também em sua
identidade étnica, para as camadas mais baixas da sociedade regional que nascia, profundamente marcada pela discriminação e pela violência interétnicas. Uma única exceção
vem confirmar a regra: em
1894, um chefe Jaricuna requisita registro das terras de sua
aldeia -como se posseiro fosse-, que lhe é negado, "em vista
de ser ele lavrador e em pequena escala não tendo direito a requerer campos para criação em
vista de não possuir gados".
Terra e gado, índices de riqueza, não caberiam a trabalhadores; a estes, segundo o
adágio recolhido pelo viajante
Henri Coudreau à boca dos fazendeiros, bastavam "pão, panno e páo". Ontem, como hoje, a
fulguração da barbárie?
NÁDIA FARAGE, professora da Unicamp, é autora de "As Muralhas dos Sertões" (1991, Paz e
Terra/ANPOCS)
PAULO SANTILLI, professor da Unesp, é autor
de "Pemongon Patá" (2001, Edunesp) e outros
artigos sobre história e etnografia de Roraima
Antropólogos, já publicaram diversos outros artigos sobre história e etnografia de Roraima
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