São Paulo, sexta-feira, 25 de junho de 2004

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NEUROCIÊNCIA

Pesquisa de brasileiro nos EUA indica que experiência e expectativa influenciam processamento de sinal sensorial

Estudo põe módulos cerebrais em dúvida

MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA

Miguel Nicolelis, 43, neurocientista brasileiro que anda fazendo e acontecendo na Universidade Duke (EUA), aprontou mais uma. A partir de um experimento engenhoso com ratos, diz agora que está errado o modelo vigente há quatro décadas segundo o qual o cérebro está dividido em módulos e áreas definidas pela reunião de colunas de células nervosas (neurônios) especializadas.
"Estamos dando uma chacoalhada no dogma central da neurofisiologia cortical, que tem mais ou menos uns 45 anos e já rendeu dois Prêmios Nobel", diz o pesquisador. Ele chamou a atenção, nos últimos anos, com uma série de experimentos com "macacos-ciborgues". Implantando centenas de microeletrodos no cérebro desses animais, demonstrou que eles podiam mover braços robóticos só por meio de pensamentos.
O mesmo tipo de microeletrodo foi usado com os ratos. Foram 317 implantes em profundidades diversas das seis camadas do córtex cerebral. É nessa "casca" do cérebro que ocorre o processamento nobre de informações.
De acordo com a visão tradicional, os sinais provenientes da periferia do corpo -ou seja, dos sentidos- estimulavam colunas específicas de neurônios, com o sinal sensorial atravessando todas as camadas de forma homogênea. Um determinado número de colunas constituiria a área cerebral dedicada especificamente ao processamento de um tipo de estímulo (visual, por exemplo), ou o que Nicolelis chama de módulos.
O experimento de seu grupo na Duke comparou o padrão de disparo (transmissão de sinal) de neurônios do roedor em situações diversas de estimulação de suas vibrissas ("bigodes", que nos ratos é um dos mais importantes órgãos sensoriais). Mostrou que são muito diferentes, dependendo de as vibrissas serem estimuladas passiva ou ativamente.
Quando o animal está explorando o ambiente (sua tarefa era estimar o tamanho de uma abertura usando esses pêlos sensíveis), o processamento do sinal tátil ocorre de cima para baixo, e não de baixo para cima. Pelo modelo vigente, as colunas deveriam funcionar no sentido inverso.
Em outras palavras: o caráter intencional da ação (o "plano motor", como diz Nicolelis), assim como a experiência anterior, afetam o modo como o animal sente o estímulo, já influenciam o que ele vai sentir.
"O módulo vai desaparecer", diz o neurocientista brasileiro. Na sua opinião, o modelo localizado de processamento de sinais sensoriais vai ser substituído pelo de processamento distribuído.
Segundo neurocientista Cláudio Guimarães dos Santos, 44, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), o experimento vem confirmar o que a psicologia cognitiva já diz há tempos. "O modelo "bottom-up" [de baixo para cima] já está em crise há 20 anos."
O trabalho de Nicolelis sai hoje no periódico americano "Science" (www.sciencemag.org) e pegou o próprio Nicolelis de surpresa. Ele havia sido notificado pelos editores de que o artigo seria publicado somente dentro de um mês. Apesar do caráter revolucionário que o pesquisador lhe atribui, não vem acompanhado de um artigo de comentário, como é comum. "Não sei por que não tem um "News & Views" [comentário]", diz Nicolelis. "O editor sabe da relevância do trabalho."
Nicolelis estava ontem em Brasília, cuidando de tirar do papel o plano de construir um Instituto de Neurociência em Natal (RN).


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