São Paulo, domingo, 25 de julho de 2004

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+ ciência

ALGUNS MAIS IGUAIS QUE OUTROS

Southern Cross University
O filósofo australiano Peter Singer participa de debate em festival de escritores de universidade de seu país natal


PETER SINGER É TIDO POR ALGUNS COMO O FILÓSOFO VIVO MAIS INFLUENTE DO MUNDO, MAS, QUANDO DECLAROU SER ACEITÁVEL MATAR BEBÊS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA, FOI CHAMADO DE NAZISTA; AGORA ELE SE EXPLICA

Johann Hari
do "Independent"

A história de Peter Singer começa nos campos da morte nazistas, com os quais ele esteve relacionado durante toda sua vida. Um de seus avós morreu em Treblinka; dois outros morreram no caminho. Todos eles tinham sido estrelas menores na era dourada do intelecto vienense dos anos 30, convivendo com Sigmund Freud, Arthur Schnitzler e Alfred Adler. Hoje, o neto deles é rotineiramente comparado aos nazistas que os levaram às câmaras de gás.
O "Wall Street Journal" recentemente comparou Singer ao vice de Hitler, Martin Bormann. Um congressista norte-americano descreveu-o como sendo "da cátedra Josef Mengele de bioética" da Universidade de Princeton. Diane Coleman, líder do grupo de direitos dos portadores de deficiência Not Dead Yet (ainda não morremos, em inglês), descreve Singer como "um defensor público do genocídio" e "o homem mais perigoso na Terra". Sentado elegantemente em um hotel londrino, Peter Singer está mastigando um bolinho, não asfixiando alguém. Ele sorri vagamente para mim. "Podemos começar?", ele pergunta.
"Você se lembra da primeira vez que foi comparado a um membro do Terceiro Reich?", eu pergunto, pensando se é possível fazer essa pergunta sem parecer rude. Ele nem pára para pensar. "Sim. Foi na Alemanha, em 1989", ele diz. Sua voz é tão suave que metade do que ele diz não é audível quando eu toco a fita mais tarde. "Fui convidado a falar em uma conferência organizada pelos pais de crianças portadoras de deficiência. Havia tantas pessoas protestando, dizendo que eu estava tentando fazer reviver a eugenia e tudo o mais, que o convite foi cancelado." Em outra palestra na Alemanha ainda no mesmo ano, seus óculos forma esmagados junto a uma multidão que gritava "Singer raus [fora Singer]! Singer raus!"
Ele me pede para lhe passar um copo d'água. Quando ele sorri para mim, agradecido, tenho de relembrar por que esse homem -descrito pela "The New Yorker" como "o filósofo vivo mais influente do mundo"- causou um ódio tão violento, vulcânico, voraz.
Seus inimigos dizem o porquê prontamente. Singer diz que é OK matar bebês portadores de deficiência. Singer diz que seres humanos com deficiências graves estão no mesmo nível de símios. Singer diz que teria sido OK matar a própria mãe. Essas acusações são cuspidas pelo canto de suas bocas. Um teólogo com quem eu falei uma vez disse com desprezo: "Peter Singer pega os instintos humanos mais básicos e tenta eliminá-los. O que ele espera que façamos, que o abracemos?"
Mas Singer não é um eugenista louco com suásticas, não importa o que seus desafetos digam. Ele se identifica como um homem da esquerda que faz campanha por políticas progressistas. Aos 58, ele é mais conhecido como o autor de "Libertação Animal", o livro de 1975 que fundou o movimento dos direitos dos animais. Seus textos hoje em dia se concentram na causa de redistribuir a riqueza abundante do Ocidente às nações famintas da África. Então, por que eles o odeiam? "Estamos em uma era incrível de transição. No Ocidente, fomos dominados por uma única tradição por 2.000 anos. Agora que essa tradição é uma doente terminal -toda a base da moral judaico-cristã-, estou tentando formular uma alternativa. Partes do que digo podem parecer obscenas e malignas se você ainda estiver olhando através do prisma da velha moral. É o que acontece quando a moralidade muda, as pessoas ficam confusas, irritadas e desgostosas", diz ele.

Utilitarismo de preferência
O sistema moral de Singer é chamado utilitarismo de preferência e vem da filosofia de John Stuart Mill, do século 19. A idéia principal: para ser moral, você deve fazer qualquer coisa que satisfaça do melhor modo as preferências da maioria das coisas vivas. Moralidade não vem do céu ou das estrelas; vem de dar, tanto quanto possível, o que queremos e necessitamos. Isso não é uma teoria acadêmica seca. Ela afeta a maioria das decisões importantes na vida de todas as pessoas. Suponha que você seja velho e queira morrer. Na ética judaico-cristã você tem uma alma imortal dada a você por Deus, e só Ele pode tomar isso de volta. Já sob o utilitarismo de preferência, isso aconteceria com uma injeção letal de um médico amigável, se necessário. A escala da ambição intelectual de Singer é impressionante. Ele tenta liderar uma revolução ética sem paralelos desde que o paganismo foi vencido e banido pela ética judaico-cristã. "Não dá para fazer mudança tão radical", diz, "sem algumas brigas". Até aí, a maior parte dos ateus, como eu, pode viajar no caminho filosófico de Singer -adeus Deus, alô utilitarismo- sem tropeçar. Mas aí chegamos aos animais, e bebês portadores de deficiência estão apenas alguns passos depois. "Você não deveria dizer animais", ele diz, "para distinguir humanos de não-humanos. Somos todos animais". Essa objeção captura o pensamento de Singer elegantemente. Ele pensa que não há nada de especial sobre ser humano. "Cada coisa viva tem preferências, e elas têm de ser levadas em consideração. Animais não-humanos não podem ser deixados de fora da equação utilitária." Para Singer, isso não é radical. "Tudo o que fazemos é tentar alcançar Darwin", ele explica. "Ele mostrou no século 19 que somos simplesmente animais. Humanos tinham imaginado que eram parte separada da Criação, que existia uma linha mágica entre Nós e Eles. A teoria de Darwin destruiu as fundações dessa maneira ocidental de pensar o lugar de nossa espécie no Universo. Ainda assim, por um século continuamos como se nada tivesse acontecido, abusando dos animais das maneiras mais terríveis. A idéia de que os humanos são especiais e podem tiranizar os animais o quanto quiserem está prestes a cair." Ele defende um novo tempo de igualdade. Não é a igualdade de seres humanos -segundo ele, uma pessoa em estado vegetativo não é igual a outra saudável. Não. Ele defende a igualdade de coisas capazes de sentir dor e de ter preferências. "A dor e o sofrimento são maus e devem ser impedidos ou minimizados, não importa a raça, o sexo ou a espécie do ser que sofre. É fato que humanos de três anos têm mais ou menos a mesma consciência, racionalidade e capacidade de sentir dor que um símio adulto. Então deveriam receber consideração moral semelhante." Singer está usando relógio e sapatos de plástico; pelo jeito, ele não usa roupas de origem animal. Apesar disso, ele desafia o clichê de ativista. "Nunca gostei muito de animais. Só fui persuadido de que eles deveriam ser tratados como seres independentes sencientes, não como meios para os fins humanos". Foi uma escolha racional, ele diz.

Vacas e bebês
Tento achar uma analogia que represente seu ponto de vista. Atirar em uma multidão em um supermercado é pior que atirar no mesmo número de vacas em um pasto, mas não por causa de sua espécie. É porque humanos têm em geral uma capacidade de querer continuar vivos (e parentes que chorarão por eles) em grau maior que as vacas. Se você estivesse chacinando humanos com deficiências cerebrais e o mesmo entendimento do mundo que um rebanho de vacas, ambos seriam muito errados, mas seriam igualmente errados. É sofrimento e a negação da vontade de uma criatura viva de continuar que contam -não a espécie. Ele assente. E é aí que entra a parte sobre matar bebês. Quando Singer compara bebês portadores de sérias deficiências a animais, ele parece -fora de contexto- insultar os deficientes. Na verdade, ele está tentando fazer-nos levar vacas e porcos e cachorros de uma maneira mais séria. Ele acredita que animais com deficiências severas que não possam viver a não ser em grande dor podem legitimamente ser mortos. Por que, ele pergunta implicitamente, esse não deveria ser o caso de bebês humanos? "Quase todo mundo aceita que algumas pessoas podem ser mortas", ele diz. "O conceito de morte cerebral -a crença de que pessoas que respiram com a ajuda de aparelhos podem ser legitimamente mortas- mostra isso. Nós começamos a pensar em termos de qualidade de vida, ao invés de pensar que toda vida é igualmente sagrada. É por isso que é lógico agora começar a pensar sobre bebês com deficiências sérias e sobre se sempre é errado matá-los. Ele continua: "Tudo que digo sobre bebês com deficiências severas é que quando uma vida é tão miserável que não vale a pena viver, então é permissível que se dê uma injeção letal. Há decisões que deveriam ser tomadas pelos pais, nunca pelo Estado, em consulta com seus médicos". Isso, ele acredita, já está acontecendo. "O que pessoas pensam que a amniocentese [diagnóstico de anormalidades genéticas no feto por meio do líquido amniótico] e o aborto seletivo de fetos com síndrome de Down são? Tudo o que digo é: por que limitar a matança ao útero? Nada mágico acontece no nascimento." É um passo pequeno, segundo ele, do aborto para o infanticídio. "Claro, o infanticídio precisa ser raro e controlado por uma legislação dura, mas não precisa ficar ilegal. Não mais que o aborto." Eu sinto desconforto, mas Singer tenta me assegurar de que é mero sentimentalismo. Ele me lembra que poucos médicos se esforçam para salvar bebês com anencefalia (sem parte do cérebro) e com espinha bífida (cindida ou dividida). Não é uma longa jornada à ética de Singer acabar com esses problemas -e um punhado de outros.

Estudo pessoal
Em sua própria vida, Singer foi recentemente forçado a confrontar o próprio objeto de estudo da maneira mais cruel imaginável. Sua mãe, Cora, desenvolveu mal de Alzheimer e, perto do fim da vida, não conseguia falar, reconhecer seus filhos ou ter prazer nas ações humanas mais básicas. Pela lógica de Singer, ela valia consideravelmente menos que um porco adulto ou uma vaca.
Singer pausa pela primeira vez na entrevista quando eu pergunto sobre isso. Sua voz continua baixa. "Eu acho que, se tivesse sido só eu o envolvido e não também minha irmã e outros familiares, minha mãe teria morrido seis meses antes do que morreu." Eu o espero continuar, mas ele não o faz. "Então o que você teria... ?" Ele não responde e olha para baixo enquanto minha pergunta se perde. Decido mudar de tática. "O que você acha que deveria acontecer a alguém em uma situação comparável à de sua mãe hoje?"
Ele olha para cima de novo. "Se um indivíduo não estipulou enquanto estava vivo o que ele gostaria que fosse feito, então a decisão caberia à família e a um comitê de ética. Se a família quer que a vida de uma pessoa com graves deficiências mentais termine, e um médico confirma que não há qualidade de vida para aquela pessoa e nenhuma chance de recuperação, eu acho que uma injeção letal seria justificada." É isso que você teria escolhido para sua mãe? "Talvez, se tivesse cabido a mim decidir."
E voltamos com tudo às acusações de nazismo. "O programa de eutanásia nazista não era eutanásia alguma. Ele não procuava dar uma boa morte a seres humanos que estivessem vivendo uma vida ruim. Seu objetivo era assassinar pessoas porque elas eram "bocas inúteis" e "reduziam a qualidade do Volk'". Pergunto como o assassinato de seus avós pelos nazistas o afetou. "Acho que me deu o senso de que há idéias terríveis no mundo e pessoas terríveis que as levariam a cabo." Mas ele discorda que isso tenha moldado sua filosofia. "Não, a razão molda meu pensamento", diz.
Singer é racionalidade pura -o Iluminismo feito carne. Ele mede a dor e a capacidade de sofrer em unidades elegantes e ignora noções fora de moda como espécie ou emoção. Ele discute matar bebês ou sua mãe com a paixão de um relógio. Dê-me Singer em vez das superstições ao estilo do Vaticano que ele espera destruir; e, mesmo assim, quando deixo a entrevista, não consigo me livrar de uma estranha -Singer diria emotiva- ansiedade.


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