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Ciência em Dia
O DNA não é um código genético
Marcelo Leite
editor de Ciência
Pelo menos na origem, a biologia molecular se parece muito com um
complô de físicos para tomar de assalto a
biologia. É impressionante a quantidade
de cérebros oriundos dela que participaram de descobertas fundamentais na
área. Basta dizer que eram físicos dois
-Francis Crick e Maurice Wilkins-
dos três ganhadores do Prêmio Nobel de
Medicina em 1962, pela descoberta da estrutura do DNA nove anos antes (o terceiro foi o biólogo James Watson).
Muito antes da dupla hélice, porém, o
plano da invasão já havia sido delineado
por Erwin Schrödinger, uma das cabeças
da mecânica quântica, num livro clássico: "What Is Life?" (O que É Vida?), lançado em 1944. Há edição brasileira, da
Unesp (196 págs., R$ 25).
A maioria dos físicos convertidos à
biologia diz que leu o opúsculo de Schrödinger e se inspirou nele. Nesse texto se
encontra a célebre dedução de que as informações hereditárias (genes) estariam
contidas num "sólido aperiódico", uma
molécula orgânica dotada de ordem,
mas não de repetição monótona, a ser
identificada nos cromossomos (os corpúsculos do núcleo celular que podiam
ser tingidos e visualizados quando eram
duplicados durante a divisão celular).
Schrödinger parece nunca ter ouvido
falar de ácidos nucleares como o DNA,
antes de escrever o livro. Curiosamente,
a obra foi publicada no mesmo ano em
que Oswald Avery comprovou que o
DNA, e não uma proteína, era a substância da hereditariedade.
Mesmo assim, o físico austríaco inaugurou a matriz conceitual até hoje empregada na genética molecular, segundo
a qual o DNA contém o chamado "código da vida". Ou seria um texto cifrado,
como escreveu Schrödinger, de forma
premonitória, no segundo capítulo de
"O que É Vida"?
Ficou consagrada a expressão "código" para designar a correspondência entre as bases nitrogenadas que formam os
degraus do DNA (as químicas A, T, C e
G), agrupadas de três em três (formando
os "códons", uma alusão a códigos), e a
ordem dos aminoácidos que servem de
tijolos na construção de proteínas específicas pela célula. Mas o próprio Francis
Crick já admitiu que a noção é errada:
"Foi só anos depois que descobri que
deveríamos ter usado a palavra "cifra"
[como no livro de Schrödinger"", disse
Crick em entrevista a Horace Freeland
Judson, autor de "The Eighth Day of
Creation" (O Oitavo Dia da Criação), talvez o melhor livro de história da biologia
molecular já escrito.
A diferença é sutil. Códigos são relações estabelecidas palavra a palavra, ou
objeto a objeto, como num jogo de batalha naval, em que um quadradinho representa submarino, dois, cruzador,
quatro, encouraçado, e cinco, porta-aviões. Precisam, por isso, de dicionários
completos para serem usados. Para o
exemplo da batalha naval, o dicionário é
curto porque são poucas as palavras a
codificar.
No caso da cifra, a regra é diversa: os
símbolos correspondem a letras, não a
vocábulos. Basta uma lista com 20 e poucas entradas para decifrar um texto cifrado (permita o pleonasmo). Vale para o
malbatizado "código" Morse, assim como para os chamados criptogramas das
populares revistas "Coquetel".
Parece picuinha, mas metáforas têm o
poder de conduzir o pensamento de modo imperceptível. Para quem se preocupa com os exageros que acompanham a
imagem da genética, são reveladoras as
palavras ditas a Judson por Crick: "Código" soa melhor, também. "Cifra genética"
não soa como nada tão impressionante
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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