São Paulo, domingo, 26 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Próximo Texto | Índice

+ ciência
Pesquisa de geneticistas da UFMG compara o DNA de brasileiros brancos com o de europeus, africanos e índios, revelando que linhagens paternas vêm quase todas de europeus, enquanto as maternas têm forte contribuição indígena, maior que a de africanas -única surpresa no padrão esperado de miscigenação
Retrato molecular do Brasil

Reprodução
Aquarela sobre papel de Aimé-Adrien Taunay, datada de 1827, mostra o interior de uma habitação de índios bororos


Marcelo Leite
Editor de Ciência

O presidente Fernando Henrique Cardoso gosta de dizer que tem o pé na cozinha. Ainda na condição de candidato, em 1994, apontou o próprio parentesco com a senzala. Como branco e brasileiro, porém, o mais correto -geneticamente correto- seria dizer que ele também tem o pé na oca. A conclusão está numa pesquisa realizada pela equipe de Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a propósito dos 500 anos do país. Pena batizou-a como "Retrato Molecular do Brasil", uma referência ao "Retrato do Brasil" de Paulo Prado, de 1927. E, claro, à fértil tradição de trabalhos que culmina em duas obras-primas do ano de 1933, "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, e "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre. Os genes não costumam mentir. "Quem herda não furta", dizia-se antigamente, em sentido tanto patrimonial quanto genealógico. Pois agora eles estão comprovando que a miscigenação deixou marcas profundas na população que se autoclassifica como branca, a maioria (51,6%) do país segundo o IBGE. Marcas contribuídas por mães índias e negras, porém. Resumidamente, eis as conclusões do grupo de geneticistas: a quase totalidade dos genes dos brancos brasileiros de hoje herdados por via paterna vieram de portugueses; já no que respeita ao que foi recebido pela linhagem materna, 60% veio de índias e de negras. O trabalho será publicado na edição de abril da revista "Ciência Hoje". Para Sérgio Pena, a surpresa maior foi encontrar tamanha contribuição de "sangue" (o correto é dizer ancestralidade) indígena na população branca. "Todo mundo no Brasil já aceita o fato de que nós somos mestiços, mas não com índios", diz. Surpreendente também, para o geneticista, é ter encontrado zero de traços genéticos índios nas linhagens paternas. Tudo se encaixa, no entanto, com o que se sabe do padrão de ocupação do Brasil colonial: homens portugueses que deixavam as mulheres em Portugal e aqui se juntavam com mulheres indígenas, num primeiro momento, e depois com as escravas negras.

Cromossomo Y
Pena e seu grupo utilizaram marcadores genéticos já clássicos para estudos de genealogia na escala de populações, o cromossomo Y e o DNA (ácido desoxirribonucléico, a molécula-código da hereditariedade) de mitocôndrias. Sua vantagem é que esses elementos genéticos são transmitidos unicamente por um dos "lados" da linhagem, respectivamente a masculina e a feminina. Cromossomos Y existem apenas em homens e só podem ser herdados do pai. O mesmo se pode dizer, quase 100%, sobre os pequenos trechos de DNA existentes nas mitocôndrias (órgãos responsáveis pela produção de energia dentro das células): elas são recebidas somente da mãe, por intermédio do óvulo. Quando um espermatozóide penetra no óvulo, suas mitocôndrias terminam descartadas, sem contribuir com material genético para a progênie. Bem, isso é verdadeiro quase 100%, mas não 100%. Em dezembro passado, artigo publicado na revista "Science" revelou que ocorre ao menos alguma mistura (recombinação, no jargão genético) entre DNA mitocondrial (mtDNA) de gametas masculinos e femininos. Um dos autores do estudo é John Maynard Smith, que figura entre os maiores biólogos do século. Segundo Sérgio Pena, porém, esses eventos de recombinação ocorreriam com milhares de anos entre si. A diferença indicada pelo artigo de Maynard Smith seria apenas entre algo impossível e algo muito raro. Como todo material genético, o cromossomo Y e o mtDNA sofrem mutações ao longo do tempo. Populações atuais, assim, carregam em seus genes registros dessa história genética, na forma dos chamados polimorfismos (diferenças por assim dizer periféricas na sequência de letras químicas de um determinado ponto do genoma, ou coleção de genes). Como não ocorre recombinação, esses trechos de DNA são transmitidos em bloco de geração para geração, permitindo rastreá-los ao longo da história -e da geografia. Esses blocos, ou grupos de polimorfismos característicos, são conhecidos como haplótipos.

Adão americano
"Os estudos filogeográficos usando o cromossomo Y baseiam-se na teoria, universalmente aceita, de que todos os haplótipos de cromossomos Y existentes hoje derivam de um haplótipo ancestral que estaria presente entre os primeiros Homo sapiens", explica Pena em seu texto. "À medida que os homens migraram para novas regiões, esse conjunto inicial de genes foi sendo modificado por mutações, o que gerou novos haplótipos, cada um comportando-se como uma linhagem evolutiva independente. Em geral, quanto mais antigo o haplótipo, maior sua distribuição geográfica." Foi com base nesse tipo de análise que Pena, em conjunto com Fabrício Santos, também da UFMG, localizaram em 1995 a provável origem dos ameríndios na Sibéria Central. Eles compararam os polimorfismos dos índios brasileiros atuais com os de várias populações do mundo. O maior grau de semelhança indicou os altais, nas montanhas de mesmo nome, e os ketis, na bacia do rio Ienissei. Falou-se, então, em um "Adão americano", ou seja, o ancestral comum que teria adentrado as Américas há cerca de 12 mil anos para fundar a população encontrada no século 16 pelo colonizador europeu. No caso da população brasileira presente, a história ensina que foi formada por europeus, africanos e ameríndios, fundamentalmente. O time da UFMG partiu então em busca dos polimorfismos já conhecidos como peculiares desses grupos em uma amostra de brancos, para medir o efeito da miscigenação entre as pessoas que (ainda) se classificam como tal. Foram analisadas amostras de DNA de 200 homens e 247 mulheres não-aparentados, escolhidos aleatoriamente entre universitários e pacientes de estudos de determinação de paternidade. Como essa amostragem tinha muitas pessoas de classe média e alta, o DNA de um grupo de dez trabalhadores rurais do vale do Jequitinhonha -uma das regiões mais pobres de Minas Gerais- foi usada para comparação, como uma forma de controlar distorções socioeconômicas.

Sangue de índia
Entre os homens, como foi dito acima, não houve grande surpresa. Nada menos do que 98% dos haplótipos encontrados por Sérgio Pena e seus colaboradores (Denise Carvalho-Silva, Juliana Alves-Silva, Vânia Prado e Fabrício Santos) são claramente atribuíveis a uma origem européia, particularmente a portugueses (que possuem uma fisionomia genética própria, na paisagem da Europa, por conta da influência moura, ou norte-africana, em sua história). A comparação foi estabelecida com auxílio de uma amostra de 93 homens portugueses, fornecida pelo geneticista Jorge Rocha, da Universidade do Porto.
Os outros 2% de ancestrais Y vieram de grupos africanos, verificou a equipe da UFMG. Digno de nota é que os geneticistas encontraram zero -isso mesmo, zero- de linhagens ameríndias paternas no sangue dos brancos de hoje. Ou seja, do ponto de vista genético e estatístico, brasileiros do sexo masculino vivos não têm ancestrais índios do mesmo sexo (nem mesmo entre seus tataravós).
Bem diferente é o panorama da genealogia colonial oferecido pelas linhagens maternas, ou seja, pelos polimorfismos do mtDNA. Nesse caso, a distribuição é bem mais uniforme: 39% de contribuição européia, 33% de indígena e 28% de africanas.
A variação das linhagens maternas entre as várias regiões, no entanto, mostra-se considerável. No Sul, por exemplo, predominam os haplótipos de mtDNA de origem européia (66%). Como esperado, também, no Norte há maior proporção de linhagens indígenas (54%), e no Nordeste, de africanas (44%). A região com maior uniformidade, e assim mais próxima da média brasileira, é o Sudeste.

Masculinidade portuguesa
Sérgio Pena acaba de retornar de Portugal, onde apresentou seu trabalho aos colegas de além-mar. Como a população brasileira é bem maior do que a da ex-metrópole e sua componente masculina é majoritariamente proveniente daquela banda da península Ibérica, o geneticista brasileiro conta, divertido, ter afirmado que o Brasil é hoje reduto da masculinidade portuguesa (uns 40 milhões de cópias do cromossomo Y, contra 5 milhões em Portugal). Um certo mal-estar, diz, percorreu a platéia. Acrescentou, então, que na realidade o Y português havia vencido no Brasil. "Aí eles gostaram." Pena faz também um cálculo semelhante para os haplótipos de fonte indígena no Brasil. Quando os lusos deram por aqui, estima-se que havia cerca de 4 milhões de índios no que se tornaria o território nacional, dos quais metade homens. Hoje, como há na população um terço de haplótipos indígenas (mtDNA), isso corresponderia a algo como 50 milhões de linhagens ameríndias, ou pelo menos dez vezes mais do que havia quando a Terra dos Papagaios foi descoberta. Segundo o geneticista da UFMG, essa descoberta da alta proporção de matrilinhagens indígenas revelou um novo instrumento de pesquisa no que chama de garimpo genético (ou arqueologia). "O homem branco brasileiro é um repositório fantástico de ancestralidade índia", afirma. "Podemos garimpar linhagens extintas no branco brasileiro."

Relevância social
"Vários autores (...) enfatizaram a natureza tri-híbrida da população brasileira, a partir dos ameríndios, europeus e africanos", escrevem Sérgio Pena e seus colaboradores da Universidade Federal de Minas na conclusão do trabalho.
"Os dados que obtivemos dão respaldo científico a essa noção e acrescentam um importante detalhe: a contribuição européia foi basicamente por meio de homens e a ameríndia e africana foi principalmente por meio de mulheres. A presença de 60% de matrilinhagens ameríndias e africanas em brasileiros brancos é inesperadamente alta e, por isso mesmo tem grande relevância social."



Próximo Texto: Em breve
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.