São Paulo, domingo, 26 de março de 2006

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Ciência em Dia

O gene egoísta trintão

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

O aniversário mais importante de hoje é o de minha filha, mas o dever profissional obriga a um mínimo de circunspecção. Comemoremos, então, os 30 anos (e não 20) de um livro excepcional, "O Gene Egoísta", de Richard Dawkins. Para o bem e para o mal, um clássico.


Genes não são, eles próprios, egoístas. São coisas, não podem ser portadores de intencionalidade


Foi essa obra que popularizou, muito além da comunidade de teóricos da biologia, a noção de que os genes -trechos de DNA associados com uma proteína ou função- são os únicos e verdadeiros atores da evolução biológica. De um ponto de vista matemático, são eles as entidades que se reproduzem e ressurgem (ou não) na geração seguinte, por artes da seleção natural.
Da óptica adotada por Dawkins, não é descabido qualificar os genes como "egoístas", porque seu interesse único na própria reprodução forçaria organismos ao altruísmo. Paradoxalmente, e no interesse do DNA, um indivíduo poderia pôr em risco sua própria sobrevivência ou reprodução se isso aumentasse a probabilidade de genes iguais aos seus (os de seus irmãos, ou filhos) alcançarem a próxima geração.
Não é por outra razão que o britânico Dawkins é considerado um dos fundadores de uma escola teórica controversa, a da sociobiologia, ao lado de Edward Osborne Wilson, nos EUA. Suas fórmulas e modelos ajudaram a entender fenômenos biológicos desconcertantes, como os indivíduos estéreis nas comunidades de insetos sociais, como abelhas e formigas.
Dawkins e Wilson devem a sua sociobiologia a um nome bem menos conhecido, o de William Donald "Bill" Hamilton (1936-2000). Dele partiram várias idéias que levaram aos genes egoístas e quetais. Ainda que o cite extensamente no livro, Dawkins acabou levando a fama, com palavras de efeito como as que foram lidas pelo apresentador de TV Melvyn Bragg, há dez dias, numa sessão da London School of Economics em comemoração aos 30 anos da obra:
"Eles estão em você e em mim; eles nos criaram, corpo e mente, e a sua preservação é a razão última de nossa existência. Eles percorreram um longo caminho, esses replicadores. Hoje atendem pelo nome de "genes", e nós somos as suas máquinas de sobrevivência." Não resta dúvida que se trata de uma expressão poderosa de uma revolucionária maneira de conceber a evolução, com reverberações teóricas que até hoje se fazem sentir. Não se deve esquecer, porém, que se trata de uma metáfora. Uma metáfora que saiu de controle e se instalou no cerne do entendimento biológico, mas ainda assim uma metáfora.
Genes não são, eles próprios, egoístas. Genes são coisas, não podem ser portadores de intencionalidade. Em biologia, não há lugar para ela (ou para finalismo, já disseram filósofos da ciência). Essa é só a forma humana de reconstruir com clarividência o que não passa da marcha cega da evolução, de antepor como plano o que é puro resultado.
Tal é a reflexão circunspecta que caberia ao gene egoísta fazer, ao alcançar a idade da razão.
Sobre a menção descabida aos 20 anos de Ana, só resta recorrer à versão hamiltoniana do argumento do escorpião que ferroa o sapo na travessia do rio: são os meus genes, ora.

Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor dos livros paradidáticos"Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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