São Paulo, domingo, 26 de abril de 2009

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Darwin para principiantes


Sai no Brasil "O Que é a Evolução", clássico moderno de Ernst Mayr, que explica o darwinismo até para criacionistas

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

O biólogo alemão Ernst Mayr (1904-2005) nunca se achou o maior evolucionista do século 20; atribuía a honra ao colega russo Theodosius Dobzhansky. Também não era dono de uma prosa exatamente charmosa, e sim conhecido por seus textos secos. Pode soar estranha, portanto, a afirmação de que seu livro "O Que é a Evolução" é provavelmente a melhor obra já escrita sobre o assunto desde 1859, quando Charles Darwin publicou "A Origem das Espécies".
Estranha, mas justificada.
A pequena obra-prima de Mayr, que chega ao Brasil no aniversário de 150 anos da "Origem", é um esforço bem-sucedido de explicar para o público leigo a teoria evolutiva e as modificações que ela sofreu neste século e meio.
Mayr era mesmo o homem certo para o trabalho. Nenhum outro evolucionista teve uma carreira tão longa -80 anos, dos seus 100 de vida. Nem o próprio Darwin, nem o codescobridor da seleção natural, Alfred Wallace, assistiram a tantas reviravoltas no pensamento biológico quanto o alemão.
Não bastasse ter sido um observador privilegiado, Mayr também foi um dos personagens centrais da revolução darwinista. Nos anos 1940, ao lado de Dobzhansky e outros, foi responsável pela Moderna Síntese Evolucionista, que conciliou a evolução com a genética e a sistemática, dando-lhe o seu formato atual. Também foi o pai do conceito biológico de espécie, adotado no mundo todo.
O autor afirma ter escrito "O Que é a Evolução" com três públicos em mente. Primeiro, os biólogos ou não biólogos que desejem saber mais sobre o assunto. Depois, os que aceitam a evolução, mas não têm certeza se a explicação darwinista é a correta. Por fim, os criacionistas "que desejam saber mais a respeito do paradigma atual da ciência evolucionista, mesmo que só para poderem argumentar melhor contra ele."
Apesar de o cientista declarar que não pretende apresentar evidências exaustivas de que a evolução é um fato (pois, segundo ele, nada convenceria "aqueles que não querem ser persuadidos"), é difícil continuar sendo um criacionista honesto após a leitura.
Mayr se dedica a desfazer equívocos do senso comum sobre o darwinismo ao mesmo tempo em que expõe o beabá da teoria. Ao explicar por que a evolução é um fato, por exemplo, expõe algumas das séries de fósseis mais completas a documentarem transições evolutivas: a dos répteis terápsidos para os mamíferos e a dos cavalos, do Eoceno até hoje.
Volta ao assunto depois, esclarecendo por que o registro fóssil aparenta ser descontínuo -um dos principais argumentos criacionistas contra a macroevolução, a evolução acima do nível de espécie. É tudo uma questão, explica, de acrescentar uma outra dimensão, a espacial, à sucessão das formas ao longo do tempo. Antes que algum criacionista pergunte, Mayr ressalta que esse processo, a evolução especiacional, não resulta de ponderações teóricas, mas de observações.
O livro desfila de forma profunda e ao mesmo tempo didática pelos conceitos-chave do pensamento evolutivo: adaptação, variação, seleção natural, população e especiação. O leitor encontra desde a famosa estrutura do DNA até a famigerada equação de Hardy-Weinberg, que trata da distribuição dos genes numa população (sem a matemática tediosa).

"Controvérsias efêmeras"
Mayr também mergulha na história e na filosofia da biologia, campo ao qual dedicou quatro décadas e no qual fez contribuições originais.
Argumenta, por exemplo, que a demora de 80 anos para que o darwinismo fosse amplamente aceito (da "Origem" até a Moderna Síntese) não se deveu à influência do cristianismo, mas sim a duas ideias filosóficas: o essencialismo (segundo o qual toda a natureza se dividia em classes imutáveis) e o finalismo (segundo o qual havia uma tendência intrínseca na natureza à perfeição).
Para os iniciados em biologia Mayr também reservou algumas pérolas. Do alto de seus 95 anos (o livro foi lançado nos EUA em 2001), pôs-se a ranhetar contra o aquilo que chamou de "controvérsias efêmeras".
Algumas delas, cabe lembrar, ocuparam as carreiras de cientistas de renome, como a teoria do equilíbrio pontuado, de Stephen Jay Gould e Niles Eldredge ("são fenômenos populacionais, sem nenhum conflito com o darwinismo"), ou causaram debates famosos, como o travado entre Gould e Richard Dawkins sobre qual seria o alvo da seleção natural ("é óbvio que é o indivíduo"). Evolução neutra? Existe, mas não é importante. Seleção de grupo? É claro que acontece.
É claro, o "Darwin do século 20", como era conhecido, não estava imune a enganos. O livro diz que as aves não podem descender dos dinossauros (algo mais ou menos comprovado hoje) e minimiza campos novos de pesquisa que têm completado o quadro darwinista, como a evolução do desenvolvimento e a epigenética. Mayr nunca quis realmente saber dessas coisas. Descontos que o leitor há de dar a uma mente que ainda era capaz de produzir uma obra empolgante e lúcida numa idade à qual muita gente nem espera chegar.


LIVRO - "O Que é a Evolução"
Ernst Mayr. Tradução de Ronaldo Sergio di Biasi e Sergio Coutinho di Biasi; Rocco; 342 págs; R$ 59,50



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