São Paulo, domingo, 26 de maio de 2002

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+ ciência

Leia texto inédito de José Reis sobre os erros da ciência e a reação da sociedade contra os cientistas

Os frutos amargos e a anticiência

José Reis

Não nasceram agora os efeitos deletérios da ação desbragada do homem na aplicação do conhecimento científico e tecnológico. Já Platão lamentava a aridez a que se reduziram os arredores de Atenas e, no alvorecer do século 17, John Evelyn denunciava a poluição em Londres e clamava pela criação de uma "área mefítica" para abrigar a indústria e impedir a contaminação do ar da cidade. Apesar dos eventuais alarmas, em geral enfrentados com ceticismo, continuou a humanidade a aproveitar ardorosamente os recursos da ciência e da tecnologia, numa irrefreável "euforia tecnocrática", para usar a expressão de Myrdall.
O encanto pela libertação da energia nuclear cedo desapareceu quando o homem passou a meditar sobre os efeitos da bomba atômica e, em particular, sobre a aparente incoerência de aplicar aquela fabulosa energia primeiro num instrumento de destruição, em vez de o fazer nas redes de eletricidade. Mais tarde, o entusiasmo aerospacial, que colocou homens na Lua, logo se frustrou diante da verificação de que cresciam as desigualdades entre os mundos desenvolvido e subdesenvolvido. Afinal, o tardio reconhecimento dos terríveis danos que a poluição avassaladora acumulara no ambiente transformou para muitos o enlevo inicial em sentimento de desespero e revolta.
Esses fatos, somados à verificação de que a ciência, dominada pela tecnologia, se fizera em grande parte prisioneira de temíveis jogos do poder, exemplificados na "síndrome de Apolo" e no "complexo de Everest", de E. Mesthene, e, por outro lado, ameaçava, pelos enormes progressos da manipulação genética, modificar o próprio homem e sua evolução natural, criaram compreensível anticlímax em muitos setores da opinião e do pensamento filosófico. Não poucos arrancaram de seu pedestal a ciência, havia pouco deificada, e o cientista, em torno do qual se tecera a imagem de sonhador ou idealista benfeitor da humanidade, de repente se viu no pelourinho.
Razão existe para muitos desses clamores, que todavia pecam em não distinguir a parte que cabe à ciência da que pertence à tecnologia e, principalmente, aos que a acionam e dela abusam na busca de lucro ou poder.
Não devemos, entretanto, supor que o movimento de anticiência, agora muito ativo, seja novidade. Ele tem, como lembra Toulmin, longa história, que periodicamente se repete e na qual recorrem cinco temas, isolada ou conjuntamente: 1) O humanismo, que reflete a posição de Sócrates ao renegar os ideais científicos dos pré-socráticos e salientar a primazia do humano em termos que até certo ponto se repetiriam, de maneira muito parecida, mais tarde em outros filósofos; 2) O individualismo, que alega serem a literatura e a arte superiores à ciência por valorizarem a personalidade de seus criadores; 3) A imaginação, que a ciência menosprezaria, com sua suposta fidelidade a padrões estereotipados de raciocínio e a nenhuma emocionalidade de seus processos criativos; 4) A quantificação, oposta à qualidade; 5) O caráter abstrato das idéias cientificas. Não seria difícil o exercício de opor argumentos a todas essas alegações, que, em sua maioria, repousam em ultrapassadas concepções da ciência e de seus métodos.
S. Cotgrove examina as objeções à ciência, a começar pela suposição de que as ciências naturais reduzem o homem a simples mecanismo. Quem acompanha a literatura sobre filosofia da ciência sabe quão precário e unilateral é esse modo de ver e quantos são os cientistas preocupados, apesar da necessária redução das coisas a elementos mais simples, para seu melhor entendimento, em não esquecer a indispensabilidade da síntese final que nos dá, quanto ao homem, um todo sempre maior do que a soma de suas partes. Provam-no o atual recrudescimento dos debates em torno de holismo e do reducionismo, assim como os numerosos simpósios e seminários que reúnem cientistas, filósofos, religiosos e pensadores de todas as correntes.
Menor não é a crítica da anticiência à alienação do cientista em face aos problemas gerais do mundo. Não atinge ela a ciência propriamente dita, nem a globalidade dos cientistas, mas um certo grupo deles, como poderia atingir muitos outros intelectuais e não-intelectuais, encasulados em suas próprias metamorfoses. O que se vê e sente hoje, na atitude de muitos cientistas, é precisamente o inverso desse quadro, uma aguda preocupação com o que da ciência fazem políticos e industriais. A responsabilidade social do cientista, tão bem exemplificada em Louis Pasteur, mantém-se viva, reativada por vários movimentos nacionais e internacionais que procuram opor-se às catastróficas e impensadas aplicações do conhecimento humano em geral. Mas a ciência expande-se a olhos vistos, malgrado todas essas vicissitudes, e sobre ela o poder está sempre lançando seus olhos cúpidos, o que justifica a pregação constante dos cientistas mais avisados a respeito dos fins necessariamente humanos de sua atividade.
Não se estriba a anticiência apenas na demonstração das consequências nocivas da ciência, mas também em considerações filosóficas mais amplas, como a que impugna a própria objetividade que se lhe atribui. Ainda aí estão a pensar num estilo de ciência fora de moda. Ninguém mais consciente do que os bons cientistas das limitações de sua objetividade e da influência do emocional em seus atos criativos. O que a anticiência não nos diz é se, sem essa relativa objetividade e emocionalidade da ciência, teríamos o mundo de conhecimentos que hoje possuímos e de que eles, os anticientistas, como todos os homens, estão a beneficiar-se a cada instante.


O texto faz parte do acervo do Núcleo José Reis-ECA/USP - Projeto "José Reis: Unidade na Diversidade", coordenado por Glória Kreinz (1992-2002)


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