São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2000

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Periscópio
Toxinas das cianobactérias

José Reis
especial para a Folha

As cianobactérias, antes classificadas como algas azul-verdes, figuram entre os mais antigos seres da Terra, com cerca de 3,5 bilhões de anos. São vegetais aquáticos unicelulares, vivendo dispersas ou em aglomerados, isoladas ou em filamentos formados pela reunião das células ponta a ponta, como colares. O material genético fica solto no citoplasma, não formando núcleo envolto por membrana. Espécies que formam cadeia geralmente são fixadoras do nitrogênio do ar, constituindo excelentes adubos.
Quando no mar, sobem e descem alternadamente, podendo as que ficam na superfície ser levadas pelo vento ou por outros fatores até as praias. Em certas condições, proliferam muito e chegam a formar maciços em lagoas, tanques e reservatórios. São ainda fotossintéticas -os primeiros seres vivos com essa faculdade-, o que significa que têm o poder de decompor gás carbônico e liberar oxigênio, captando a energia solar e transformando-a em química.
Em 1878, George Francis, de Adelaide, Austrália, demonstrou que as cianobactérias produzem toxinas que, quando ingeridas em grande quantidade, provocam doenças e até a morte em animais. A partir de então se descreveram muitas outras espécies tóxicas e ganhou grandes atrativos o estudo dessas toxinas. Sobre elas Wayne Carmichael escreveu artigo em "Scientific American" (270, 1, 64).
Com o enriquecimento crescente dos esgotos em matérias nitrogenadas e fosforadas, cresce a probabilidade de proliferação das cianobactérias nos reservatórios municipais, com a possibilidade de contaminação do homem. Até hoje não se registrou um só caso de acidente desse tipo. Não obstante, a ação de algumas toxinas tem sido sugerida como causa de algumas doenças, inclusive o câncer.
As toxinas até hoje estudadas são de dois grupos -neurotoxinas e hepatotoxinas. Quatro neurotoxinas foram estudadas minuciosamente: anatoxina-a, anatoxina-a(s), saxitoxina e neosaxitoxina. A mais pesquisada é a primeira, que imita a ação da acetilcolina, neurotransmissor importante na fisiologia nervosa. Ela transmite aos neurônios ou a fibras musculares estímulos de contração, que são interrompidos pela enzima acetilcolinesterase. Sem a interferência dessa enzima, a contração seria contínua e poderia provocar paralisia e morte.
A anatoxina-a difere da acetilcolina por não ser degradável pela esterase. Por isso causa convulsões, paralisias e morte. Não se conhece ainda antídoto para ela. Por outro lado, a resistência à colinesterase faz da anatoxina-a excelente instrumento de laboratório em neurofisiologia para provocar ação prolongada da acetilcolina. Acredita um cientista que algum derivado da anatoxina-a possa vir a servir para tratar o mal de Alzheimer, em que há deficiência da acetilcolina.
A anatoxina-a(s) tem ação semelhante à dos compostos sintéticos organofosforados, usados como inseticidas, agindo como inibidor da acetilcolinesterase.
As hepatotoxinas têm complexo meio de agir, encolhendo as células do fígado e lesando os capilares, que enchem de sangue os espaços vazios. O mecanismo pelo qual a toxina prejudica as células do fígado depende muito de sua ação sobre a formação do esqueleto celular. Por poder inibir certos sistemas enzimáticos, há a possibilidade de que, ingerida em doses não-letais porém repetidamente, ela possa contribuir para a promoção do câncer, o que parece confirmado por experiências feitas com cianobactérias.
Grande alarde publicitário se tem feito em todo o mundo em torno de produtos dietéticos produzidos a partir de cianobactérias, algumas de cujas espécies são muito ricas de boa proteína. Carmichael adverte, porém, quanto à falta de regulamentação do uso desses produtos e a possibilidade de confusão dos inócuos com os venenosos, que eventualmente venham a ser fabricados.


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