São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ Marcelo Gleiser

O drama da descoberta


A natureza nem sempre corresponde aos nossos anseios

A ciência muitas vezes é considerada uma atividade sem emoções, destituída de drama, fria e racional. Na verdade, ela é justamente o oposto disso.
A premissa da ciência é a nossa ignorância, nossa vulnerabilidade em relação ao desconhecido, ao que não sabemos. Existe sempre uma sensação de insegurança, de não termos certeza de estar indo na direção certa.
Nos casos mais comuns, quando experimentos revelam novos aspectos da natureza que não haviam nem sequer sido conjecturados, a enorme surpresa, a sensação de tatearmos no escuro, pode levar ao desespero. Nenhum exemplo na história da ciência é mais revelador desse drama do que o nascimento da física quântica, a físca que descreve o comportamento dos átomos e das partículas subatômicas -e que essencialmente está por trás de toda a revolução digital que rege a sociedade moderna.
Ao final do século 19, a física estava com muito prestígio. A mecânica de Newton, a teoria eletromagnética de Faraday e Maxwell, a compreensão dos fenômenos térmicos, tudo levava a crer que a ciência estava perto de chegar ao seu objetivo final, a compreensão de toda a natureza. Ao menos assim pensavam vários físicos.
Grande engano. Para a surpresa de muitos, experimentos revelaram fenômenos que não podiam ser explicados pelas teorias da chamada era clássica. Não se entendia por que corpos aquecidos acima de certas temperaturas brilhavam com aquela luz avermelhada que vemos nas brasas de uma boa fogueira. Não se entendia por que a luz violeta podia carregar eletricamente uma placa metálica neutra, enquanto a luz amarela nada fazia.
Não se sabia se átomos eram ou não entidades reais, já que a física clássica previa que seriam instáveis, com os elétrons espiralando em direção ao núcleo. Gradualmente, ficou claro que uma nova física era necessária para lidar com o mundo do muito pequeno. A questão era o quanto essa física seria diferente. Ninguém queria mudanças muito radicais. Ou quase ninguém.
A primeira idéia da nova era veio de Max Planck, que, em 1900, propôs que átomos recebem e emitem energia em pequenos pacotes, que chamou de "quanta". Antes disso, qualquer sistema emitia e recebia energia continuamente, como quando aquecemos um bule d'água. Eis como Planck descreveu seu estado emocional ao propor a idéia do quantum: "Resumidamente, posso descrever minha atitude como um ato de desespero, já que por natureza sou uma pessoa pacífica e contrária a aventuras irresponsáveis.
Quaisquer que fossem as circunstâncias, qualquer que fosse o preço a ser pago, eu tinha de obter um resultado positivo". O uso da palavra "desespero" é revelador. Planck viu-se forçado a propor algo de fundamentalmente novo, que ia contra tudo o que havia aprendido até então e que acreditava ser correto sobre a natureza. Abandonar o velho e propor o novo requer muita coragem intelectual. Planck o fez pois sabia que a física tinha como missão explicar o mundo natural, mesmo que a explicação contrariasse seus preconceitos. Os experimentos não deixavam dúvida de que algo de novo era necessário. Planck, um modelo da integridade de um cientista, sabia que seu compromisso com a natureza era o único que importava.
Como esse, existem muitos outros exemplos de cientistas que, deparados com resultados misteriosos e surpreendentes, lutam para propor e aceitar idéias que vão de encontro ao que acreditam ser correto. Talvez essa seja a lição mais importante da ciência, que a natureza nem sempre corresponde aos nossos anseios e que precisamos encará-la com a humildade de quem sabe muito pouco.


MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"


Texto Anterior: Mas... é ciência?
Próximo Texto: + Marcelo Leite: Paranóia e mistificação
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.