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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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BIÓLOGO CANADENSE PROPÕE MANIPULAR GENE PARA ELIMINAR MOSQUITO QUE CAUSA A MALÁRIA

SOLUÇÃO DEFINITIVA

Science
Imagem mostra o mosquito Anopheles gambiae, transmissor da malária


Reinaldo José Lopes
free-lance para a Folha

Bombas realmente inteligentes -das que não mandam inocentes pelos ares- nunca saíram do campo da ficção quando a guerra é entre exércitos de verdade. Imagine, contudo, que o míssil da vez não ataque linhas de suprimento ou de comunicação, mas genes. E que o uso desse míssil biológico possa pôr fim a uma guerra que faz 1 milhão de vítimas por ano: a batalha dos seres humanos contra a malária. O objetivo final é eliminar ou modificar uma espécie inteira. Vale a pena apertar o botão? Os arsenais dessa guerra não estão abertos, a tal ogiva genética nem foi instalada ainda, mas talvez seja hora de começar a discutir essa possibilidade. Quem está por trás da bomba inteligente é o canadense Austin Burt, 39 anos, biólogo evolutivo e pesquisador do Imperial College, Reino Unido. Embora o alvo primário na cabeça de quase todo mundo seja o mosquito Anopheles gambiae, principal transmissor da malária na África -continente onde a doença mais mata-, a estratégia proposta por ele seria capaz de derrubar qualquer espécie que se reproduza usando o sexo. "Estamos fazendo testes, ainda muito preliminares, em drosófila [mosca muito usada em experimentos genéticos]", contou Burt à Folha. É que a técnica só existe por enquanto como modelo teórico, detalhado pelo biólogo num artigo publicado on-line pela revista científica britânica "Proceedings of the Royal Society B" (www.pubs.royalsoc.ac.uk/procbio). A idéia do canadense se baseia em parasitas genômicos conhecidos como HEGs (sigla inglesa para genes de inserção de endonuclease). Eles aparecem principalmente em leveduras e outros tipos de fungo e não têm função conhecida -ao menos em benefício do organismo que os abriga. Contudo, são tão eficazes em benefício próprio que ganharam o apelido de genes egoístas -capazes de copiar a si mesmos em lugares do genoma onde normalmente não apareceriam. O truque toma partido da maneira como o DNA fica armazenado na maioria dos seres vivos complexos: em pares de cromossomos, as estruturas enoveladas que todo animal, planta e fungo tem no núcleo das células. Em geral, o HEG está em só um dos cromossomos do par, mas não por muito tempo. Como o nome do gene indica, suas "letras" químicas contêm a receita para produzir uma enzima que picota o material genético do núcleo (uma endonuclease, no jargão da biologia). A endonuclease do HEG é capaz de reconhecer e cortar, no cromossomo não-invadido ao lado, a sequência de "letras" idêntica ao lugar do cromossomo infectado onde ela já está. Depois que essa tesoura molecular faz seu serviço, a célula é compelida a corrigir o buraco usando como modelo a área do cromossomo-irmão -e copia inadvertidamente o próprio HEG para dentro do DNA antes intacto. A artimanha do gene não seria tão séria se ele se limitasse a saltar de um cromossomo a outro. Acontece que, se ele consegue atingir os tecidos que vão dar origem às células sexuais (óvulos e espermatozóides), o HEG transforma sua passagem à próxima geração em algo líquido e certo. Explica-se: essas células, ao contrário das que existem nos tecidos normais, têm só um conjunto de cromossomos, em vez de pares deles. Ao se xerocar para os dois membros de cada par, o gene garante 100% de oportunidade de chegar aos óvulos e espermatozóides -e ao novo organismo que surgir da união deles.


Você tem de um lado esse mosquito e de outro 1 milhão de pessoas morrendo por ano. Ora, vá em frente, não tem problema"


Penetra
"Não sei muito sobre o mosquito", confessa Burt, que, no controle dos A. gambiae, é quase tão penetra quanto os genes que estuda. "As pessoas tem falado em modificá-lo geneticamente há muito tempo. Eu trabalhava com os HEGs de leveduras, e certo dia deparei com um artigo científico que falava sobre criar proteínas capazes de reconhecer sequências de genes específicos, como uma ferramenta de terapia gênica. Foi aí que comecei a pensar: e se você pudesse criar HEGs que pudessem afetar sequências essenciais para espécies como o mosquito?" Foi com base nesse estalo que o biólogo desenvolveu o seu modelo de um gene egoísta. Nas versões mais brandas da técnica, ele poderia ser usado para desligar um gene que permite ao inseto transmitir a doença, mas a aplicação mais eficaz é mesmo a aniquilação -fazer com que o HEG bagunce um gene sem o qual o A. gambiae (ou qualquer inseto nocivo) não vive. Não ia ser muito esperto enfiar o HEG sem mais nem menos num gene essencial, simplesmente porque o animal modificado morreria antes de passar o parasita genômico adiante, para seus descendentes -e não há meio de eliminar uma população sem que isso aconteça. A primeira providência sugerida por Burt, portanto, é inserir o HEG num gene do tipo letal recessivo -ou seja, a modificação só mataria o mosquito se ocorresse nos dois cromossomos-irmãos. Grande coisa, murmuraria o leitor. A marca registrada dos HEGs não é exatamente saltar de um cromossomo para outro? Na natureza sim, mas Burt tem outras cartas na manga. Uma receita interessante, diz o biólogo, teria como ingrediente um promotor (uma sequência de DNA que regula quando um gene é ligado ou desligado) associado à meiose, ou seja, à divisão por dois dos cromossomos que ocorre nas células sexuais. Na prática, isso significa que o mosquito em que o HEG foi inserido permanece vivo e com saúde porque só tem uma cópia dele; contudo, a imensa maioria de seus espermatozóides (ou óvulos) terão o gene. "Não dá para dizer que todos vão tê-lo porque o HEG não é 100% eficiente", ressalta Burt. Seja como for, o resultado ainda é o mesmo: se dois portadores do gene cruzarem, os filhotes com o par do parasita genômico serão inviáveis, diminuindo a população de A. gambiae. O pesquisador canadense até já fez as contas: se 1% da população do inseto receber o gene egoísta, mas 95% das células sexuais dos infectados contiverem o HEG, quatro quintos da espécie terão dado adeus ao planeta em 12 gerações. "A coisa é rápida, extremamente rápida", diz Margareth de Lara Capurro, pesquisadora do ICB (Instituto de Ciências Biomédicas) da USP que tenta modificar geneticamente o Anopheles darlingi, parente do A. gambiae no Brasil, para impedir que ele transmita a malária. "Uma geração, do ovo ao adulto botando ovos, tem 15 dias em média." O holocausto anofelino não precisaria de muito mais de 180 dias para ocorrer.

Travas de segurança
Parece bom demais para ser verdade. "Não conheço bem o sistema, mas até pensei em me comunicar com ele para tentar algum trabalho conjunto", diz Marcelo Jacobs-Lorena, pesquisador brasileiro da Universidade Case Western, em Ohio (EUA), que também luta para criar mosquitos que não transmitam a doença. O grande problema, porém, é que por algum motivo o HEG "engenheirado" em laboratório saia modificando o DNA do mosquito de formas imprevistas ou, pior ainda, afete outras espécies de inseto, inofensivas ou importantes ecologicamente. Com o que se conhece da imprevisibilidade desse tipo de manipulação genética, é bom não pagar para ver.
"É complicado tentar prever coisas imprevisíveis", brinca Burt. "Vai ser preciso escolher alvos genômicos exclusivos do A. gambiae ou das espécies que têm relação próxima com ele e transmitem a doença." O biólogo lembra que os cientistas já dispõem do genoma do inseto -cujo sequenciamento foi completado no ano passado, ao lado do genoma do próprio Plasmodium falciparum, o mais letal microrganismo a causar a malária.
"Se por algum motivo o HEG ativar o corte de regiões do DNA em outro cromossomo, ou numa área diferente da que ele foi projetado para picotar no cromossomo certo, o mecanismo de reparo da célula vai usar uma região não-afetada por ele como modelo", afirma.
"Até onde sei, o papel ecológico dele não é importante, e o mesmo vale para o número relativamente pequeno de espécies que conseguem causar imenso sofrimento humano", argumenta Burt. Jacobs-Lorena concorda: "As possibilidades de que esse gene seja transferido para outro organismo são remotas. Algumas pessoas sempre ficam receosas, mas eu sou mais aventureiro: o mundo não sofreria nem um pouquinho se os mosquitos desaparecessem".
Capurro, embora também mostre entusiasmo pela técnica, diz não estar certa de que a aniquilação seja a melhor escolha. "Eu optaria por criar uma população refratária [que não transmita a doença". Será que, ao eliminar um vetor, outro não vai ocupar o lugar dele? Imagine o caso do Aedes aegypti, que transmite a dengue nas casas, e o A. albopictus, que faz isso fora das casas. Se você eliminar o A. aegypti, alguém vai ter de ocupar o lugar dele, o nicho não vai permanecer vazio", afirma a pesquisadora.
Burt ganha um tom ligeiramente pensativo ao telefone quando questionado sobre um possível dilema moral na aniquilação. "Não é algo que você faz alegremente", pondera. "As pessoas com quem falo a respeito costumam ter o seguinte raciocínio: "Bem, você tem de um lado esse mosquito e de outro 1 milhão de pessoas morrendo por ano... ora, vá em frente, não tem problema". No fim, acho que a coisa se resume a isso."


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