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São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

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Ciência em Dia

A chatice da prosa científica

Marcelo Leite
editor de Ciência

Azar daqueles que, sem serem pesquisadores, se vêem obrigados a ler rotineiramente revistas científicas. Como já disse Francis Crick, um dos descobridores da estrutura do DNA, "não há forma de prosa mais difícil de entender e mais tediosa de ler do que o artigo científico mediano".
É fato, não é boato: literatura científica é um troço chato. Mas não precisa ser. Qualquer um que tenha lido um ensaio de Stephen Jay Gould, Jared Diamond ou Carl Sagan sabe que ciência natural nada tem de incompatível com estilo.
Exemplo muito citado é um texto de 1979 de Gould e de Richard Lewontin, que usam os tímpanos da catedral de São Marcos, em Veneza, para explicar seu conceito evolutivo de "exaptação". Saiu nos "Proceedings" da Royal Society, de Londres.
Talvez com alguma imprudência, a também britânica "Nature" de 22 de maio deu destaque à doença que infesta suas próprias páginas. Publicou uma reportagem de Jonathan Knight intitulada "Clear as Mud" (claro como lama). OK, o texto saiu na parte noticiosa da revista, que busca dar a não-especialistas -e todo cientista é um não-especialista fora de sua área- uma idéia do que acontece no panorama da pesquisa mundial.
Knight relata as pesquisas de Donald Hayes, sociólogo aposentado da Universidade Cornell, sobre a dificuldade de leitura de artigos científicos. Hayes criou um índice de dificuldade baseado na ocorrência de palavras mais (ou menos) comuns (www.soc.cornell.edu/hayeslexical-analysis). O nível zero corresponde à linguagem de jornais diários.
Seus cálculos apontam que os artigos em revistas científicas como "Nature" e "Science" saltaram na última década da casa dos 20-25 pontos para a dos 30-35 pontos. Há 50 anos, ficavam em torno de 15 pontos na escala de dificuldade. Há cem, o placar estava em zero -quer dizer, no plano dos jornais.
É claro que a maior responsável por isso é uma crescente especialização da pesquisa. Ela traz consigo o excesso de jargões, como acontece de forma aguda na biologia. Um exemplo representativo de título de artigo: "NF-kappaB2/ p100 induz a expressão de Bcl-2". Até certo ponto isso facilita a comunicação entre especialistas, mas ao preço de afastar cada vez mais leigos do texto.
Bem, entre as pessoas comuns que recuam com horror diante dessa dificuldade estão repórteres de ciência. Alguns cientistas já começaram a perceber que ter seu trabalho noticiado num jornal ou revista ajuda a torná-lo mais conhecido também entre cientistas. Isso aumenta a chance de o artigo vir a ser citado, o que reforça seu impacto, que pode ser e é medido (com base nas listas de referências publicadas ao final de cada texto).
Por falar em impacto, a mesma edição da "Nature" noticia outra pesquisa curiosa, feita por Mikhail Simkin e Vwani Roychowdhury, da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Rastreando a repetição de erros tipográficos em referências, eles descobriram que muitos cientistas copiam listas inteiras delas, o que permite supor que não leiam os artigos que citam nos próprios trabalhos.
O texto de Simkin e Roychowdhury pode ser obtido da internet (http://xxx.lanl.gov/ftp/cond-mat/papers/0305/0305150.pdf). Começa em grande estilo: "Durante o "Projeto Manhattan" (a construção da bomba atômica), [o físico Enrico] Fermi perguntou ao general [Leslie] Groves, chefe do projeto, qual era a definição de um "grande" general. Groves respondeu que qualquer general que tivesse vencido cinco batalhas seguidas poderia seguramente ser chamado de "grande" ".
É fato, não é boato: ciência não precisa ser um troço chato.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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