São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2000


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+ ciência
Descoberta revê hipóteses sobre época da extinção da cultura marajoara (400-1300 d.C.)
A segunda morte de Marajó

Cristiano Cantão/Agência Amazônia
Fragmentos de cerâmica marajoara encontrados no sítio Cacoal, no rio Anajás


Claudio Angelo
da Reportagem Local

Uma pilha de cacos de cerâmica depositados sobre uma mesa no Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, pode ajudar os arqueólogos a recontar a história da cultura marajoara, uma das mais avançadas e desconhecidas civilizações indígenas que já habitaram o país.
Os fragmentos foram descobertos em 1998, durante o resgate do sítio arqueológico do Cacoal, previsto para ser destruído por uma hidrovia na ilha de Marajó (PA). Datações obtidas ali pela arqueóloga Denise Pahl Schaan, do Museu Goeldi, mostram que a cultura marajoara sobreviveu pelo menos até 1650, quando os portugueses tomaram definitivamente o controle da ilha.
Até agora, achava-se que essa civilização - famosa por sua espetacular cerâmica decorada- tivesse sido misteriosamente extinta por volta de 1300, dois séculos antes da conquista. Quando os europeus chegaram à costa norte da ilha, no século 16, foram recebidos (não exatamente de forma pacífica) pelos índios aruãs, que haviam migrado da região do Baixo Amazonas para Marajó, supostamente invadindo território marajoara.
A opinião mais comum entre os arqueólogos era que uma epidemia, ou mesmo uma guerra prolongada com os invasores aruãs, tivesse dado cabo da população marajoara. "Os novos resultados nos obrigam a pensar numa outra explicação para esse desaparecimento", afirma Schaan, uma gaúcha de 38 anos.
Segundo ela, o golpe de misericórdia nos marajoaras pode ter sido dado pelos próprios europeus (holandeses e portugueses). "A presença européia na ilha pode ter afetado o equilíbrio político marajoara, levando a sociedade à fragmentação e ao declínio", diz.

Cacicado
Reconstituir a história de povos que sumiram sem deixar muita coisa além de potes de barro e alguns ossos desmilinguidos não é fácil. Muitas vezes os arqueólogos precisam se apoiar em evidências tão frágeis quanto cerâmica velha. Ainda assim, os resultados podem surpreender.
É o caso de Marajó. As primeiras escavações sistemáticas na ilha só foram feitas na década de 80, pela arqueóloga norte-americana Anna Curtenius Roosevelt, da Universidade de Illinois em Chicago. Estudando a cerâmica marajoara e uma série de tesos -os imensos aterros de até 12 metros de altura onde os marajoaras construíam suas casas e enterravam seus mortos-, Roosevelt desconfiou estar diante de uma sociedade extremamente complexa.
Seus estudos mostraram que o Marajó pré-cabralino pode ter sido um cacicado -um estágio de organização política intermediário entre a tribo e o Estado-, algo inédito entre as atuais sociedades indígenas brasileiras.
O resultado das escavações de Roosevelt bateu de frente com a hipótese formulada décadas antes por sua conterrânea Betty Meggers, considerada a inauguradora da arqueologia amazônica. Para Meggers, o ambiente amazônico era pobre demais em recursos e proteínas para produzir sociedades complexas. Estudando os tesos marajoaras durante a década de 50, Meggers, antropóloga da Smithsonian Institution, afirmou que se tratava simplesmente de centros cerimoniais vazios, produzidos por uma cultura efêmera.
"Nosso trabalho demonstrou que os tesos também eram habitações", diz Roosevelt. "Achamos restos de fogões e cerâmica doméstica nos aterros", afirma.

Rooseveltianos X meggerianos
O debate sobre a viabilidade de culturas complexas na Amazônia virou uma guerra acadêmica, que ainda está para ser resolvida e dividiu os estudiosos da área em rooseveltianos e meggerianos. Em Marajó, os primeiros parecem estar com a vantagem. Por enquanto.
No livro "Moundbuilders of the Amazon" (Construtores de Aterros da Amazônia), Roosevelt calcula a população total da civilização marajoara, no seu auge, em até 200 mil pessoas, cujos vestígios culturais estão distribuídos por uma área de 20 mil quilômetros quadrados (o equivalente ao tamanho do Estado de Sergipe). "Sua extensão territorial apequena a de algumas famosas civilizações do Velho Mundo", escreveu.
As datas encontradas por Roosevelt para a cerâmica marajoara nos sítios de Guajará e Teso dos Bichos, no leste da ilha, iam do ano 400 ao ano 1300 da era atual. Depois dessa época a cerâmica decorada desaparecia.
O sítio escavado por Denise Schaan fornece, pela primeira vez, pistas sobre o que teria acontecido com os marajoaras depois do século 14. A principal evidência de que ela dispõe é uma série de datações de carvão obtido junto à cerâmica em duas áreas do sítio do Cacoal. Duas delas correspondem aos anos 1545 e 1650.
A margem de erro em datações desse tipo é de cerca de 40 anos, para mais ou para menos. "Como as datas estavam ordenadas em sequência no sítio (quanto mais profundo, mais velho o material), achamos que a datação é confiável", explicou.
"Não conheço o sítio, mas não me espantaria se a cultura marajoara tivesse durado além de 1300", disse Anna Roosevelt à Folha, por telefone.
Os cacos de cerâmica achados em Cacoal não permitem dizer muito sobre as causas do declínio dos marajoaras, mas dão uma idéia sobre como deveria ser o estilo de vida de seus habitantes no tempo das antas magras. Apesar de a cerâmica decorada persistir, não foram achadas ali as urnas funerárias típicas da fase marajoara, onde eram enterrados os figurões do cacicado. Tampouco há evidências de construção monumental, que sempre mobiliza muita mão-de-obra -sendo, por isso, considerada uma evidência de poder centralizado.

Mulheres "importadas"
O que a cerâmica afirma, sim, é que os remanescentes da tradição marajoara "importavam" mulheres de fora da ilha. Schaan chegou a essa conclusão depois de examinar detidamente o tempero da cerâmica encontrada no sítio.
O tempero é qualquer material misturado à argila para dar resistência ao vaso e impedir que ele rache no fogo. Em Marajó o tempero usado é o caco de cerâmica moído. Em Cacoal aparece pela primeira vez na ilha o uso de cariapé, uma casca de árvore queimada. "Achamos estranho, porque o cariapé é típico do Baixo Amazonas, mas inexistente na ilha", disse Schaan.
Nas camadas inferiores do sítio, o uso do cariapé aparece primeiro na cerâmica doméstica, que tem forma bem distinta da cerimonial, que ainda usa o caco moído.
Nas camadas de cima, no entanto, o cariapé passa a ser usado também na cerâmica decorada, às vezes misturado ao caco moído. Nas culturas amazônicas, quem faz cerâmica são sempre as mulheres. O começo do uso de cariapé -um material "estrangeiro"- na baixela dos marajoaras pode indicar uniões interétnicas.
"Com o tempo essa tecnologia foi absorvida pelo grupo, um indício de que há um convívio entre povos diferentes. Agora, de onde vieram essas mulheres, eu não sei dizer", afirma Schaan.
Segundo a arqueóloga, a descoberta dos temperos diferentes pode ser uma pista a favor da hipótese de que os marajoaras não eram um único povo, e sim um conjunto de tribos diferentes que partilhavam a mesma organização política e a mesma cultura.
"Acho pouco provável que um mesmo povo tivesse mantido um poder central durante mais de mil anos numa área tão grande", diz a arqueóloga. "O que se chama de cultura marajoara é uma coisa heterogênea, que tem em comum a construção dos tesos e o estilo de cerâmica." Ainda de acordo com a pesquisadora, Marajó pode ter tido vários centros de poder, que se sucediam no tempo. É como se um país tivesse várias capitais, de acordo com o grupo político que conseguisse formar mais alianças para ganhar o poder. "Mas faltam estudos que nos permitam afirmar isso. Por enquanto é só uma hipótese", ressalva a pesquisadora.
Os primeiros europeus a chegar à foz do Amazonas, no século 16, ficaram espantados com o número de índios que habitavam a várzea dos rios. Um viajante português comentou que, "se do ar deixassem cair uma agulha, haveria de dar em cabeça de índio e não ao solo". O explorador Maurício Heriarte, ao visitar o território tapajó (atual região de Santarém, PA), afirma que uma das aldeias "bota de si 60 mil arcos quando manda dar guerra".
Não há nenhuma informação histórica sobre a permanência dos marajoaras na época da conquista. Pelo menos não com esse nome. Segundo Schaan, o cacicado já deveria estar em declínio. "Do contrário haveria alguma menção a índios que fabricavam vasilhas decoradas." A região norte de Marajó, então habitada pelos aruãs, era visitada frequentemente pelos holandeses, aliados comerciais dos índios. O interior, impenetrável para os europeus, era território dos "nheengaíbas" (homens de língua feia, em tupi), que receberam o apelido pouco carinhoso por falar idiomas diferentes do tupi -na época, língua franca da Amazônia Oriental. Eles viviam em pé de guerra com os aruãs, que invadiram a ilha por volta de 1300.
Segundo Schaan, é possível que os remanescentes da cultura marajoara estivessem entre esses índios de língua feia. "É provável que naquela época de conflito as tribos tenham se fragmentado", diz Schaan.
A economia marajoara era baseada na circulação de bens de prestígio, como objetos cerimoniais. Encontraram-se em urnas funerárias da fase marajoara desde machados de pedra (não existem pedras na ilha) até muiraquitãs, os amuletos de jadeíta típicos da cultura tapajônica. A guerra com os aruãs pode ter perturbado esse comércio, abalando a autoridade dos chefes marajoaras.
Outro motivo para a desagregação pode ter sido a disputa pelo poder interno. "Os cacicados são estruturas políticas instáveis, a morte de um chefe pode ocasionar a troca de poder", diz Denise Schaan. Somados, esses fatores poderiam ter feito os supostos remanescentes da cultura marajoara abandonar os seus assentamentos, alguns deles com capacidade para comportar 10 mil pessoas, e migrar para aldeias menores -como Cacoal.
No século 17 os portugueses resolveram começar a tentativa de tomar Marajó da Holanda. Estabeleceram uma missão jesuítica na ilha em 1644, 29 anos depois da fundação de Belém. Mas, mesmo depois de construída a missão, sofriam com os ataques dos índios. E dos dois lados: dos aruãs, aliados dos holandeses, e das tribos do interior, que não queriam se aliar a ninguém.
Entre uns e outros, os lusos resolveram tentar a paz com as tribos do interior. O armistício só seria assinado em 1659, quando 17 chefes principais juraram lealdade à Coroa Portuguesa. Só então os europeus conheceram o interior da ilha. Foi o começo da retirada de todos os índios de Marajó para as missões jesuíticas do Grão-Pará, onde a maioria morreu, vítima de epidemias.
A arqueóloga afirma que os dados históricos que permitiriam identificar a presença marajoara foram ignorados por dois motivos: primeiro, não havia nenhuma datação que batesse com o período da conquista.
"As datas mais recentes obtidas por Anna Roosevelt para o Teso dos Bichos foram descartadas." Segundo, a idéia de várias tribos falando línguas diferentes não casava com a concepção arqueológica de que uma tradição cerâmica correspondia, necessariamente, a uma unidade étnica.
"O desaparecimento da fase marajoara antes da chegada dos europeus não poderia estar relacionado ao sumiço da população em si", afirma. "Se a população era tão grande quanto se supunha, é pouco provável que uma epidemia tenha arrasado com ela de vez."


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