São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2000


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BIOLOGIA
Cientistas atribuem moléstias como lúpus e artrite reumatóide a parentes do vírus da Aids conhecidos como ERVs
Ex-vírus pode causar doença auto-imune

BRYANT FURLOW
DA "NEW SCIENTIST"

Imagine que você tem um cão de guarda bom e fiel, que espanta ladrões da sua casa à noite. Mas um dia, depois de escorraçar os intrusos, em vez de voltar a dormir ele vem correndo para o seu quarto, com os dentes arreganhados, e começa a atacar você.
Agora você já pode imaginar o choque que sentem as pessoas que descobrem que seu sistema imunológico -o cão de guarda molecular- virou um traidor.
Doenças auto-imunes como a esclerose múltipla, o lúpus e a artrite reumatóide fazem milhões de vítimas todo ano. Seus métodos envolvem um sistema imunológico tão zeloso que ataca o corpo que ele foi feito para defender.
A chave para o problema pode estar no chamado complexo principal de histocompatibilidade (mais conhecido pela abreviação em inglês MHC), os mais de 200 genes do sistema imunológico.
Pessoas que carregam certos alelos (variações de genes) do MHC têm tendência a desenvolver as doenças auto-imunes.
Para Graham Boyd, professor aposentado de medicina na Universidade da Tasmânia, em Hobart (Austrália), a culpa pode ser de antigos vírus instalados no genoma humano, conhecidos como retrovírus endógenos, ou ERVs.

Casa nova
Os ancestrais virais dos ERVs invadiram as células dos nossos antepassados milhões de anos atrás e gostaram tanto da casa nova que resolveram ficar. Viraram parte integrante do genoma humano. Mais de 1% do genoma é feito de ERVs e seus fragmentos.
Como os demais retrovírus, inclusive o vírus da Aids, eles têm sua informação genética codificada em RNA, que se converte em DNA depois de infectar as células para se infiltrar no genoma.
Muitos dos pedaços de ERVs no genoma humano estão inativos. Outros, porém, continuam produzindo proteínas virais. Eles também têm o mau hábito de passear pelo genoma, copiando a si mesmos onde quer que vão. Qualquer uma dessas manias poderia explicar por que certos genes do MHC podem estar ligados a doenças auto-imunes.
Uma maneira pela qual os ERVs poderiam disparar doenças auto-imunes é causando problemas regulatórios nos genes do MHC, sugere Klaus Badenhoop, da Universidade de Frankfurt.
Embora ninguém saiba por quê, eles têm uma afinidade especial pela região do MHC. Badenhoop está investigando se os alelos de risco do MHC fazem o estrago que fazem por confundir as sequências de liga-desliga dos genes do penetra com as suas próprias. Se fosse assim, o esperado seria encontrar mais dessas sequências -conhecidas pela sigla LTR- perto de genes de risco do que perto de genes normais do MHC.
E foi exatamente isso que Badenhoop e seu colega Chris Seidl descobriram em grupos de genes que aumentam o risco de diabetes tipo 1 e artrite reumatóide.
"Faltam mais evidências, mas os LTRs dos retrovírus endógenos podem ser marcadores genéticos para doenças auto-imunes", diz.

Corrida armamentista
Graham Boyd também crê na hipótese. Mas, em vez de ver os seres humanos como vítimas inocentes, ele prefere outra explicação: os vírus e seus hospedeiros vivem uma espécie de corrida armamentista evolutiva.
Como espécies exóticas num novo ecossistema, eles a princípio causam um desequilíbrio. Mas, depois que se adaptam ao novo ambiente (no caso, o genoma), sua sobrevivência está vinculada à do hospedeiro. Então, quanto maior o tempo de associação, mais domados estariam os instintos anti-sociais dos ERVs.
Essa trégua, no entanto, é instável. Embora a maioria dos ERVs não produza normalmente as proteínas que provocam o ataque do sistema imunológico, muitos deles retêm a instrução genética para fabricar essas partículas.
Essa relutância ao desarmamento pode armar o cenário para doenças auto-imunes. ERVs que retêm seu potencial para produzir proteínas se parecem mais com lobos precariamente domados do que com cachorrinhos leais. Às vezes, os vírus acordam da soneca civilizada e começam a bombear proteínas virais.
O que torna ferozes os ERVs domesticados? Para Roswitha Löwer, geneticista do Instituto Paul Erlich em Langen, Alemanha, radiação ultravioleta e bactérias estão entre os possíveis despertadores de vírus. Boyd acredita que a chave está em danos sucessivos às células, provocados tanto por infecção de vírus selvagens quanto por estresse psicológico.
O estresse poderia afetar os nervos que controlam o fluxo de sangue arterial. O corte temporário do abastecimento de sangue poderia danificar as células, contribuindo para a ativação dos retrovírus endógenos.
Seja como for, uma vez que os ERVs começam a produzir moléculas que se parecem com antígenos (proteínas invasoras que provocam o sistema imune), os genes do MHC podem disparar para atacar a suposta infecção. O resultado é um bombardeio às células.

Terapias na mira
Até agora, a participação dos ERVs nas doenças auto-imunes permanece sem conclusão. Se eles realmente tiverem culpa no cartório, as implicações para a medicina são enormes.
Löwer está particularmente preocupada com a terapia genética e com os transplantes de órgãos entre espécies. Os retrovírus usados como veículos na terapia genética são parentes dos ERVs e poderiam ativar os vírus adormecidos do paciente. A promessa de xenotransplantes usando órgãos de porcos e babuínos pode ser perigosa pelo mesmo motivo.
As preocupações de Löwer têm sentido. No começo deste ano, uma equipe de pesquisadores mostrou que os ERVs de porcos de fato codificam vírus. Pior ainda, esses vírus podem se multiplicar em tecidos humanos.
O lado positivo da história é que a descoberta pode levar a novas maneiras de combater doenças que, até agora, pareciam atacar aleatoriamente. Se os ERVs são ativados pelo estresse, identificar e eliminar as suas causas poderia também eliminar a traição imunológica que leva a esses males.


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