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BIOLOGIA
Cientistas atribuem moléstias como lúpus e artrite reumatóide a parentes do vírus da Aids conhecidos como ERVs
Ex-vírus pode causar doença auto-imune
BRYANT FURLOW
DA "NEW SCIENTIST"
Imagine que você tem um cão
de guarda bom e fiel, que espanta
ladrões da sua casa à noite. Mas
um dia, depois de escorraçar os
intrusos, em vez de voltar a dormir ele vem correndo para o seu
quarto, com os dentes arreganhados, e começa a atacar você.
Agora você já pode imaginar o
choque que sentem as pessoas
que descobrem que seu sistema
imunológico -o cão de guarda
molecular- virou um traidor.
Doenças auto-imunes como a
esclerose múltipla, o lúpus e a artrite reumatóide fazem milhões
de vítimas todo ano. Seus métodos envolvem um sistema imunológico tão zeloso que ataca o corpo que ele foi feito para defender.
A chave para o problema pode
estar no chamado complexo principal de histocompatibilidade
(mais conhecido pela abreviação
em inglês MHC), os mais de 200
genes do sistema imunológico.
Pessoas que carregam certos
alelos (variações de genes) do
MHC têm tendência a desenvolver as doenças auto-imunes.
Para Graham Boyd, professor
aposentado de medicina na Universidade da Tasmânia, em Hobart (Austrália), a culpa pode ser
de antigos vírus instalados no genoma humano, conhecidos como
retrovírus endógenos, ou ERVs.
Casa nova
Os ancestrais virais dos ERVs
invadiram as células dos nossos
antepassados milhões de anos
atrás e gostaram tanto da casa nova que resolveram ficar. Viraram
parte integrante do genoma humano. Mais de 1% do genoma é
feito de ERVs e seus fragmentos.
Como os demais retrovírus, inclusive o vírus da Aids, eles têm
sua informação genética codificada em RNA, que se converte em
DNA depois de infectar as células
para se infiltrar no genoma.
Muitos dos pedaços de ERVs no
genoma humano estão inativos.
Outros, porém, continuam produzindo proteínas virais. Eles
também têm o mau hábito de
passear pelo genoma, copiando a
si mesmos onde quer que vão.
Qualquer uma dessas manias poderia explicar por que certos genes do MHC podem estar ligados
a doenças auto-imunes.
Uma maneira pela qual os ERVs
poderiam disparar doenças auto-imunes é causando problemas regulatórios nos genes do MHC, sugere Klaus Badenhoop, da Universidade de Frankfurt.
Embora ninguém saiba por quê,
eles têm uma afinidade especial
pela região do MHC. Badenhoop
está investigando se os alelos de
risco do MHC fazem o estrago
que fazem por confundir as sequências de liga-desliga dos genes
do penetra com as suas próprias.
Se fosse assim, o esperado seria
encontrar mais dessas sequências
-conhecidas pela sigla LTR-
perto de genes de risco do que
perto de genes normais do MHC.
E foi exatamente isso que Badenhoop e seu colega Chris Seidl
descobriram em grupos de genes
que aumentam o risco de diabetes
tipo 1 e artrite reumatóide.
"Faltam mais evidências, mas os
LTRs dos retrovírus endógenos
podem ser marcadores genéticos
para doenças auto-imunes", diz.
Corrida armamentista
Graham Boyd também crê na
hipótese. Mas, em vez de ver os seres humanos como vítimas inocentes, ele prefere outra explicação: os vírus e seus hospedeiros
vivem uma espécie de corrida armamentista evolutiva.
Como espécies exóticas num
novo ecossistema, eles a princípio
causam um desequilíbrio. Mas,
depois que se adaptam ao novo
ambiente (no caso, o genoma),
sua sobrevivência está vinculada à
do hospedeiro. Então, quanto
maior o tempo de associação,
mais domados estariam os instintos anti-sociais dos ERVs.
Essa trégua, no entanto, é instável. Embora a maioria dos ERVs
não produza normalmente as
proteínas que provocam o ataque
do sistema imunológico, muitos
deles retêm a instrução genética
para fabricar essas partículas.
Essa relutância ao desarmamento pode armar o cenário para
doenças auto-imunes. ERVs que
retêm seu potencial para produzir
proteínas se parecem mais com
lobos precariamente domados do
que com cachorrinhos leais. Às
vezes, os vírus acordam da soneca
civilizada e começam a bombear
proteínas virais.
O que torna ferozes os ERVs domesticados? Para Roswitha Löwer, geneticista do Instituto Paul
Erlich em Langen, Alemanha, radiação ultravioleta e bactérias estão entre os possíveis despertadores de vírus. Boyd acredita que a
chave está em danos sucessivos às
células, provocados tanto por infecção de vírus selvagens quanto
por estresse psicológico.
O estresse poderia afetar os nervos que controlam o fluxo de sangue arterial. O corte temporário
do abastecimento de sangue poderia danificar as células, contribuindo para a ativação dos retrovírus endógenos.
Seja como for, uma vez que os
ERVs começam a produzir moléculas que se parecem com antígenos (proteínas invasoras que provocam o sistema imune), os genes
do MHC podem disparar para
atacar a suposta infecção. O resultado é um bombardeio às células.
Terapias na mira
Até agora, a participação dos
ERVs nas doenças auto-imunes
permanece sem conclusão. Se eles
realmente tiverem culpa no cartório, as implicações para a medicina são enormes.
Löwer está particularmente
preocupada com a terapia genética e com os transplantes de órgãos entre espécies. Os retrovírus
usados como veículos na terapia
genética são parentes dos ERVs e
poderiam ativar os vírus adormecidos do paciente. A promessa de
xenotransplantes usando órgãos
de porcos e babuínos pode ser perigosa pelo mesmo motivo.
As preocupações de Löwer têm
sentido. No começo deste ano,
uma equipe de pesquisadores
mostrou que os ERVs de porcos
de fato codificam vírus. Pior ainda, esses vírus podem se multiplicar em tecidos humanos.
O lado positivo da história é que
a descoberta pode levar a novas
maneiras de combater doenças
que, até agora, pareciam atacar
aleatoriamente. Se os ERVs são
ativados pelo estresse, identificar
e eliminar as suas causas poderia
também eliminar a traição imunológica que leva a esses males.
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