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São Paulo, sábado, 27 de setembro de 2003

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AMAZÔNIA

Animais da região ajudam uma comunidade do Tapajós a abandonar práticas agrícolas que degradam floresta

Tartaruga e tambaqui criam renda no Pará

Flávio Florido/Folha Imagem
No cercado para alimentação de tartarugas e peixes, morador de Coroca, no rio Arapiuns (PA), exibe 1 dos 4.000 tambaquis criados


MARCELO LEITE
ENVIADO ESPECIAL A SANTARÉM (PA)

Todos tinham ido ver os "quelônios" (tartarugas) e tambaquis, mas o grupo de jornalistas desembarcados na vila Coroca precisou esperar um pouco. Antes das apresentações e do suco de carambola, toparam foi com a faixa do PDA: "Implantação de Bases Integradas para a Proteção do Meio Ambiente - Aprucipesc". Nenhum quelônio à vista.
O início da visita comprovava que a Amazônia está se transformando numa floresta de siglas e abreviações, além de território livre para a burocracia ambiental internacional. PDA é o apelido dos 188 projetos demonstrativos da Amazônia, criados sob o guarda-chuva do... PPG7 (Programa Piloto para Conservação das Florestas Tropicais no Brasil, bancado com doações dos sete países mais ricos do mundo).
Há males que vêm para bem. A Aprucipesc, por exemplo, é a Associação dos Produtores Rurais e Criadores de Peixe da Comunidade de Coroca, que reúne 17 famílias dessa comunidade ribeirinha a quatro horas de barco da sede do município de Santarém, ao qual pertence. Gente engajada no que há de mais moderno para a floresta: manejo sustentável. Quer dizer, explorar sem derrubar.

Nas ondas do Arapiuns
Coroca fica na margem esquerda do Arapiuns, afluente do Baixo Tapajós, para muitos o rio mais bonito da Amazônia. De lancha, como a que levou os jornalistas "do Sul", o percurso cai para 75-90 minutos. É pouco demais, para quem necessita adaptar-se a esse pequeno paraíso: praias de areia branca, um largo rio verde com ondas, curumins para todo lado.
A faixa de areia tem não mais que 20 m, além de um muro de 270 m de comprimento, construído com a ajuda financeira do padre alemão José Gross. Por trás da faixa e do muro, o microparaíso se alarga: um lago de águas claras e mornas, cercado pela mata.
Na realidade, grande parte dos 35 mil metros quadrados (3,5 hectares) do espelho d'água também está tomada por plantas. E por um exército de tartarugas-da-amazônia (Podocnemis expansa), 3.575 delas, além de centenas de tambaquis (Colossoma macropomum), iguaria amazônica que pode alcançar seus 30 kg.

Liberdade para engordar
Os peixes de Coroca não têm muito mais que 1 kg. Criados em três gaiolas de 8 m3, ganham a liberdade relativa do lago, para engorda, quando alcançam 300 g. Mesmo nas cheias, quando rio e lago se misturam, os tambaquis dão com as telas do muro.
As tartarugas, que começaram a ser criadas em 1999 com 22 g a 25 g, podem atingir 80 cm e até 60 kg, mas isso leva décadas. Em Coroca, depois de quatro anos de criação, um censo com 880 delas indicou peso médio de 1,8 kg. É o suficiente para comercialização, segundo o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), que estipula peso mínimo de 1,5 kg.
O percurso de 5 m até o cercado onde ficam os cochos de alimentação é feito em balsa de madeira improvisada sobre tonéis de plástico azul, empurrada pelas ribeirinhos. Chegou a hora dos quelônios. Todos acorrem para o mesmo lado, e a balsa pende. Funcionários da Delegação da Comissão Européia (DCE) no Brasil, que ajuda a financiar o projeto, tentam equilibrar a plataforma.
Uma rede ajuda a reunir quelônios e peixes para fotografias e filmagens. As tartarugas unham os pescadores, enquanto as seguram de borco. Sossegam, vencidas, quando apoiadas de pernas para o ar, deixando visível o talho no décimo anel da carapaça que marca o "rebanho" de Coroca.
A carne da tartaruga-da-amazônia ainda não está sendo comercializada. Segundo Carlos Chocrón, analista ambiental do Ibama responsável pelo projeto, na venda para restaurantes apuraria um máximo de R$ 10/kg. Seguindo a filosofia de agregar valor na própria comunidade, o plano é ganhar dinheiro com um restaurante no local. Um quilo renderia pelo menos quatro pratos, que seriam oferecidos a R$ 30 cada.

Poupança cabocla
Já há até projeto arquitetônico pronto para o restaurante-trapiche, cuja construção está prevista para o final do ano, ao custo de R$ 44 mil. O Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) quer transformá-lo num dos chamarizes do pólo turístico no Baixo Tapajós, cujo epicentro é a cidade de Alter do Chão (na boca do lago Verde para o Tapajós, a 28 km de Santarém).
As tartarugas são "tipo uma poupança" para os caboclos de Coroca, diz Jander Santos Barrada, 28, um dos líderes.
Ao todo, o PDA do PPG7 trouxe para a vila Coroca o equivalente a cerca de R$ 120 mil de investimentos, incluída aí a contrapartida local (R$ 35 mil, na forma de trabalhos comunitários). A tentativa de afastar os ribeirinhos da agricultura tradicional, na base da derrubada e da queima da floresta, não se limita, porém, à criação de quelônios e peixes.
Para garantir a engorda dos tambaquis e das tartarugas, os 26 associados da Aprucipesc estão reflorestando 2,5 ha de mata ciliar (nas margens do lago) com árvores que produzem alimentos para os animais, como uruá e socoró.
Outra atividade para aumentar a segurança alimentar e a renda dos moradores são as plantações consorciadas, uma tentativa de imitar a estrutura da cobertura florestal que também é conhecida como agricultura em andares ou sistema agroflorestal. Já foram convertidos 6 ha para a implantação desses quintais, como são chamados.
Por fim, há a apicultura. As 20 colméias previstas viraram 25, pois há grande demanda por mel ecologicamente correto da Amazônia. Já foram produzidos 900 kg, que saem a R$ 10/kg. Antes de PDA, PPG7, Ibama, DCE, Aprucipesc e Sebrae, Coroca nunca tinha visto tanto dinheiro.

Toma lá, dá cá
Os ambientalistas defendem que se trata de uma troca justa: remunerar os ribeirinhos pela manutenção da biodiversidade e pelo sequestro de carbono da atmosfera. Árvores que crescem fixam CO2 em sua biomassa, contribuindo para atenuar o aquecimento global resultante da emissão desse gás na queima de combustíveis fósseis, como o carvão e os derivados de petróleo.
Países ricos, que precisam diminuir emissões de CO2 para cumprir metas do Protocolo de Kyoto, estão interessados em pagar para ficar com esses créditos de emissões gerados nos cafundós do Pará. Globalização é isso: caboclos que sempre estiveram fora do mercado correm para entrar nele por uma porta que ainda está sendo inventada, a do carbono.

O jornalista MARCELO LEITE viajou ao Pará a convite da Delegação da Comissão Européia no Brasil


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