São Paulo, segunda-feira, 28 de janeiro de 2002

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FÍSICA

Cientista do Reino Unido propõe criar em laboratório um "horizonte de eventos", a fronteira desses corpos ultradensos

Experimento imita limite de buraco negro

SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Na impossibilidade de ver de perto a fronteira que separa a região interna de um buraco negro e o Universo à sua volta, um pesquisador propõe produzir em laboratório uma réplica dessa linha imaginária -com a vantagem de prescindir do gigante faminto.
"É, de um certo modo, um horizonte de eventos sem um buraco negro", diz Ulf Leonhardt, cientista da Universidade de St. Andrews (Reino Unido), referindo-se ao experimento. Segundo ele, os resultados podem produzir evidências contundentes em favor de uma hipótese levantada em 1974, pelo físico Stephen Hawking, de que buracos negros podem evaporar sem deixar vestígios, após bilhões de anos.
Buracos negros surgem do colapso de estrelas gigantes. Após queimarem todo o seu combustível, elas não conseguem usar a energia obtida a partir da fusão de átomos para contrabalançar o efeito gravitacional. O resultado é que os restos da estrela colapsam sobre si mesmos, formando uma massa compacta que gera em suas imediações atração gravitacional tão intensa que nada consegue escapar de seu interior. Nem a luz.

Horizonte de eventos
A linha que divide o que pode escapar do astro e o que está fadado a cair no buraco negro é o chamado horizonte de eventos. O que está dentro não sai mais. O que está fora ainda tem chance.
Analisando o comportamento desses objetos estritamente a partir da teoria da relatividade, que concebe a gravidade apenas como uma curvatura do espaço, seria de supor que o buraco negro nunca regurgitasse nada. Seu destino seria comer até não poder mais.
Só que, quando se fala de objetos singulares como esses, a relatividade geral não basta. Alguns fenômenos em escala atômica passam a ser importantes, exigindo a inclusão de elementos da mecânica quântica, teoria que explica as forças da natureza não como curvaturas no espaço (como faz a relatividade), mas como partículas.
Infelizmente, essas duas teorias não se bicam. "Uma teoria que una as duas já tem nome, teoria quântica da gravitação, mas ainda não foi inventada", diz George Matsas, do Instituto de Física Teórica da Unesp. O melhor quebra-galho é a chamada teoria semiclássica da gravitação, que une com sucesso alguns elementos quânticos à relatividade.
Foi com base nessa teoria que Hawking concluiu que buracos negros na verdade cospem radiação a partir de seu horizonte de eventos, o que faria com que eles evaporassem com o passar dos éons (bilhões de anos).
O experimento proposto por Leonhardt na última edição da revista científica britânica "Nature" (www.nature.com) envolve o uso de um material com o que se chama de transparência eletromagneticamente induzida. Em termos simples, significa que pode ficar transparente de acordo com o tipo de luz jogado sobre ele.
Lançando sobre esse material quantidades diferentes de luz, é possível criar uma região não-transparente na parte central e regiões mais transparentes nas pontas (veja o quadro à direita).
Ao incidir um outro raio de luz por dentro do material, ele vai avançar e reduzir sua velocidade, até parar completamente quando a matéria estiver opaca. Essa região opaca simula -em termos apenas eletromagnéticos- o efeito do horizonte de eventos sobre raios de luz. Assim como no interior do material (que Leonhardt diz poder ser um gás ultrafrio ou um cristal) a luz pára, no horizonte de eventos acontece a mesma coisa -lá, na verdade, é como se o próprio tempo parasse.

Radiação Hawking
A execução desse experimento, segundo o cientista, é realizável com os recursos que estão à disposição dos físicos experimentais de hoje. O resultado esperado é uma emissão de fótons de natureza similar à radiação Hawking -o "cuspe" do buraco negro.
No efeito Hawking, dois fótons são gerados espontaneamente nas proximidades do horizonte de eventos. Um deles cai na singularidade (objeto colapsado no centro) com energia negativa, o que reduz a energia total e o diâmetro do horizonte. Com a redução, o fóton que sobrou se vê além da fronteira e consegue escapar.
A observação de uma ocorrência similar em laboratório seria um grande passo para apoiar a conclusão do famoso físico britânico, de que esses astros vomitam até sumir. "Sim, poderia fortalecer a confiança nos cálculos teóricos de Hawking", diz Leonhardt.
Não chega a ser confirmação, entretanto. A radiação emitida no experimento proposto é ligeiramente diferente da que ocorre na borda de um buraco negro. "No meu caso, o espectro de radiação é diferente [do de Hawking", e podem-se observar os fótons e seus parceiros em dois detectores, um colocado à esquerda e outro à direita do horizonte", afirma.

Inspiração brasileira
Uma das inspirações para o cientista de St. Andrews veio do Brasil. "É uma longa história. Um dos eventos essenciais para mim foi a primeira conferência mundial sobre modelos análogos da teoria da relatividade, realizada no Rio de Janeiro em 2000, no Lafex [Laboratório de Cosmologia e Física Experimental de Altas Energias"", conta Leonhardt.
O objetivo da reunião foi avaliar situações não-gravitacionais que ainda assim sigam o modelo da gravitação descrito pela relatividade. No caso da proposta de Leonhardt, por exemplo, ele usa propriedades ópticas para obter um fenômeno similar ao que acontece pelo colapso gravitacional do buraco negro.
"Processos que imitam o efeito Hawking gravitacional têm sido vistos em diversos sistemas de natureza não-gravitacional", diz Mário Novello, pesquisador do Lafex que coordenou a conferência de 2000. "Esses sistemas envolvem, entre outros, fluidos (ondas de som), supercondutores etc. No artigo de Ulf é proposto um cenário que é capaz de produzir, em princípio, observação direta de um fenômeno relacionado com a radiação Hawking."
A idéia de Leonhardt é vista com bons olhos pelos cientistas que conduzem estudos na área. "Em princípio, a experiência é factível", diz Matsas. "Seria o primeiro análogo da radiação Hawking produzido em laboratório. Seria realmente muito bonito."


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