São Paulo, segunda-feira, 29 de maio de 2006

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Boto de rio é outra espécie, mostra DNA

Genética diz que tucuxis do litoral e da Amazônia, considerados um único bicho, se separados há até 5 milhões de anos

Estudo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro aponta que risco de extinção é maior do que o imaginado para o cetáceo

Marcos César Santos/Projeto Atlantis
Em imagem rara feita por cientista da USP, boto tucuxi marinho salta da água e exibe seu ventre


REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

Rezava a lenda que apenas uma espécie de boto havia conseguido colonizar tanto o litoral brasileiro quanto a bacia do Amazonas, mas o DNA parece indicar que essa história tem tanto fundamento quanto a suposta mania do bicho de engravidar mocinhas. O chamado boto-cinza ou tucuxi são, na verdade, duas espécies diferentes, dizem pesquisadores.
"Muita gente ainda continua usando o nome científico Sotalia fluviatilis tanto para os animais marinhos quanto para os fluviais, mas a gente espera chegar a um consenso sobre a separação das espécies logo", disse à Folha o biólogo Antonio Solé-Cava, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Num trabalho encabeçado por Haydé Cunha, aluna de Solé-Cava, os pesquisadores descobriram que a semelhança física entre os dois tipos de boto-cinza esconde uma separação genética bastante antiga.
Dá até para colocar uma data (média, é verdade) no momento em que as duas espécies se separaram: algo entre 5 milhões e 2,5 milhões de anos atrás, escala de tempo só ligeiramente inferior à da divergência entre seres humanos e chimpanzés. Com os novos dados, é muito provável que os cientistas ressuscitem o nome Sotalia guianensis, que os naturalistas do século 19 deram à forma marinha e que acabou sendo abandonado.
Na época, a decisão até fazia sentido. A única diferença significativa entre o boto da Amazônia e o do litoral parecia ser o tamanho (os bichos de rio são cerca de 50 cm menores, com 1,5 m, e não 2 m de comprimento). "Com técnicas mais novas, como a geometria morfométrica, as pessoas têm visto que existe sim uma diferença entre eles", afirma Solé-Cava.
O golpe definitivo, no entanto, está vindo da genética. O pesquisador e seus colegas utilizaram amostras de dezenas de animais, de norte a sul do litoral brasileiro e também de vários pontos da bacia amazônica, inclusive da foz do grande rio, que nunca havia sido escrutinada antes.
Eles estudaram dois trechos do mtDNA, ou DNA mitocondrial. Presente nas mitocôndrias, as usinas de energia das células, esse tipo de material genético tem a vantagem de traçar um quadro claro de descendência (pois só é transmitido de mãe para prole) e de acumular alterações ao acaso em suas "letras" químicas a uma taxa conhecida, funcionando como um relógio molecular.
"A descontinuidade genética [entre os botos de mar e de rio] é grande", diz o pesquisador da UFRJ, resumindo os resultados obtidos com o DNA. Alguém poderia argumentar que a análise é só metade do quadro, por vir só do lado materno, mas o trabalho de um grupo da Nova Zelândia, que estudou o DNA do núcleo das células (cuja origem é tanto paterna quanto materna), confirmou os resultados brasileiros e deixou poucas dúvidas, diz Solé-Cava.
Tudo indica que os bichos marinhos fazem das suas no rio também: o grupo descobriu que os botos da foz do Amazonas estão muito mais próximos geneticamente de bichos do litoral de Santa Catarina do que de tucuxis do interior amazônico. Já as populações do Sul e do Sudeste são as menos diversificadas geneticamente, o que talvez indique uma expansão recente, de poucos milhares de anos, para o Atlântico Sul, aproveitando o mar mais quente depois do fim da Era do Gelo.
O DNA também parece confirmar que os botos do Amazonas descendem de animais marinhos que foram parar no interior do continente durante um aumento do nível do mar há milhões de anos. Mas a importância dos dados é maior para o futuro do que para o passado das espécies, diz o biólogo: "A gente achava que o Sotalia, por ter distribuição ampla, estava fora de perigo. Quando fica claro que são duas espécies, isso pode mudar um pouco."


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