São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2004

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Ciência em Dia

Devagar com o nanoandor

Marcelo Leite
colunista da Folha

Porta arrombada, põe-se a tranca. Depois de penar anos a fio com a reação social diante dos organismos geneticamente modificados (OGMs), os britânicos decidiram atuar preventivamente no caso das nanotecnologias -que lidam com objetos na escala do nanômetro, ou milionésimo de milímetro. Até o príncipe Charles já começava a pôr areia nelas (macroscopicamente falando), comparando-as com a talidomida. O resultado da ação precavida está num relatório divulgado no final de julho, um bom começo para quem quer se informar sobre o tema sem cair nas armadilhas do exagero, pró ou contra.
O estudo levou 13 meses para ser concluído. Havia sido encomendado em junho de 2003 pelo governo de Tony Blair à Sociedade Real (academia de ciências do Reino Unido) e à Academia Real de Engenharia. O relatório pode ser obtido no site da Royal Society (www.nanotec.org.uk/finalReport.htm). Seu mandato era estimar futuros desenvolvimentos da nanotecnologia e seu impacto social e ambiental.
A primeira consideração geral do estudo vai na linha do comedimento: partículas dessa dimensão, a mesma de átomos e moléculas, têm tudo para ser quimicamente muito mais reativas do que outras da mesma substância em escala maior. Isso porque elas têm uma superfície proporcionalmente maior, portanto uma quantidade maior de átomos e moléculas exposta para interação com outras partículas.
É a velha história do beija-flor e do elefante contada nas aulas de biologia. Qualquer um pode perceber que o primeiro é muito mais frenético em seu metabolismo, e todo aluno aprende que isso tem a ver com um corpo de área proporcionalmente maior, em relação ao volume, para perder calor. Pense em dois cubos, um com 1 cm e outro com 10 cm de lado, portanto com áreas de 6 cm2 e 600 cm2, respectivamente, e volumes de 1 cm3 e 1.000 cm3. A superfície do cubo maior é só cem vezes a do menor, mas seu volume é mil vezes maior. O paquiderme tem menos superfície (pele) em relação ao volume (órgãos e músculos) do que o beija-flor.
Já que o assunto desviou-se para organismos, serve como deixa para mencionar um dos temores aventados quanto a nanopartículas: a possibilidade de que atravessem membranas celulares com facilidade. Como são mais reativas, poderiam desencadear processos químicos indesejáveis no interior de seres vivos.
O relatório britânico diz que a questão deve ser levada a sério, mas não demais. "É muito improvável que novas nanopartículas manufaturadas possam ser introduzidas em seres humanos em doses suficientes para causar efeitos sobre a saúde como os que têm sido associados com nanopartículas do ar poluído."
De todo modo, o estudo recomenda que a sua presença em instalações de pesquisa seja monitorada, pois os cientistas seriam suas primeiras vítimas. Os concorridos nanotubos de carbono, em que átomos desse elemento formam uma rede com jeito de tela de galinheiro enrolada, originam fibras ultra-resistentes cujas propriedades físicas fazem suspeitar que sejam tóxicas como as de asbesto (amianto).
O relatório também exorciza sumariamente o mais popular dos nanofantasmas, o da "gosma cinza" -temor de que nanorrobôs auto-replicantes cubram a superfície da Terra, sufocando todas as formas de vida. Começa lembrando que tais máquinas não existem e termina dizendo, no mesmo parágrafo, que não há evidência de que venham a existir em futuro previsível.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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