São Paulo, sexta-feira, 30 de janeiro de 2004

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MEDICINA

Alteração de uma só "letra" do genoma de vírus facilitou o acesso a células humanas; civeta foi a fonte da doença

Grupo identifica a arma genética da Sars

REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Sutis modificações no genoma do vírus da Sars permitiram sua transmissão de pessoa a pessoa, desencadeando a epidemia que matou 800 pessoas no ano passado. Essa é uma das conclusões de um estudo de pesquisadores na China e nos EUA, que também sugere qual a hora certa de cortar esse mal pela raiz: quando ele ainda é transmitido de animais para pessoas, não de pessoa a pessoa.
"O que nós vemos é o vírus realizando uma série de ajustes finos para melhorar seu acesso a um novo hospedeiro, o ser humano", disse Chung-I Wu, da Universidade de Chicago, que assina o artigo publicado ontem na versão on-line da revista americana "Science" (www.scienceexpress.org) ao lado de colegas do Consórcio Chinês de Epidemiologia Molecular da Sars (síndrome respiratória aguda grave, na abreviação em inglês), também chamada de pneumonia atípica. "É um processo perturbador."
A equipe analisou vírus retirados de 63 pacientes chineses das três fases que a epidemia teve desde novembro de 2002. A primeira se caracterizou por casos isolados e sem conexão na Província de Guangdong (sudeste da China).
A segunda foi marcada pelo primeiro surto em massa, afetando mais de cem pacientes de um hospital de Cantão. Um médico levou o vírus para um hotel de Hong Kong, o que permitiu que ele infectasse vítimas fora da China.

Das civetas para o homem
A Sars começou assustando pouco porque, aparentemente, só era transmitida pelo consumo da carne de civetas (Paguma larvata), um pequeno mamífero considerado verdadeira iguaria pelos chineses. Wu e seus colegas fortaleceram ainda mais essa relação, ao descobrir que o genoma do vírus da primeira fase da epidemia era idêntico ao de civetas selvagens e domésticas.
No entanto, modificações sutis no vírus aparecem assim que começa a segunda fase da epidemia. Uma delas, ainda difícil de ser interpretada, é o desaparecimento de apenas 29 "letras" químicas de RNA (a molécula-irmã do DNA que serve de material genético para diversos vírus) das quase 30 mil que formam o genoma do coronavírus causador da Sars.
Alterações menores, afetando uma única "letra" de RNA, podem ter sido ainda mais importantes. Elas modificaram a proteína conhecida como "spike" (esporão), que permite ao vírus se acoplar à superfície da célula que está invadindo. Teoricamente, a mudança transformaria o parasita num invasor mais eficiente de células humanas, que são ligeiramente distintas das de civetas, em termos bioquímicos.
Uma coisa é certa: uma vez efetuadas as mudanças, o parasita parece ter se dado tão bem que elas foram conservadas no decorrer da epidemia, reduzindo a diversidade de cepas do vírus que existia antes. Tanto é assim que, depois que a epidemia foi finalmente controlada e um novo caso isolado apareceu na China em dezembro do ano passado, a versão do vírus presente no paciente não tinha essas adaptações, mas era parecida com a de civetas.
Para os pesquisadores, uma das principais lições a serem extraídas do processo que gerou a epidemia é que se deve detê-la antes que o vírus aprenda a se espalhar entre humanos. Afinal, a própria eficiência da infecção aumentou com o tempo: no início, só 3% das pessoas em contato com doentes eram infectadas, número que subiu para 70% no auge da epidemia de Sars.
Finalmente, conhecer em detalhes as modificações no gene da proteína "spike" pode levar ao desenvolvimento de uma vacina, capaz de bloquear a invasão das células humanas da qual essa molécula participa.


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