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+ Marcelo Gleiser
Gênese cósmica
A luz que nos separa da escuridão é a luz da nossa curiosidade
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Em meados de março, cientistas
norte-americanos revelaram
análises dos dados colhidos durante cinco anos pelo satélite WMAP
(do inglês, Wilkinson Microwave Anisotropy Probe). O satélite, em si, é já
um feito impressionante. Sua missão
foi medir pequenas flutuações de temperatura no banho de radiação que
permeia o cosmo, a chamada radiação
cósmica de fundo.
Uma imagem útil é a de uma banheira cheia d'água. Mesmo que a
temperatura pareça ser a mesma em
todos os lugares, um termômetro ultra-sensível mediria variações diminutas aqui e ali. No caso do Universo, a temperatura média é de 2,75 graus
acima do zero absoluto (na escala Celsius, 273 graus negativos), e as flutuações medidas pelo WMAP são de centésimos de milésimos de grau.
O WMAP, como sugere o nome, mapeou a temperatura dos céus, registrando regiões ligeiramente mais
quentes ou mais frias do que a média.
O significado dessas regiões é profundo: essencialmente, são as impressões
digitais dos processos que marcaram a
infância cósmica, dando origem às
primeiras galáxias e estrelas, os fósseis de nossas origens.
Como todo bom fóssil, esses objetos
registram um passado remoto -mais
precisamente, de quando o Universo
tinha apenas 400 mil anos, uma pequena fração dos seus 13,73 bilhões
atuais. A história cósmica, a versão
moderna que inclui o Big Bang, o
grande evento que marcou a origem
de tudo, é hoje reconstruída com tremenda precisão. Quando físicos e astrônomos afirmam que o Universo
tem 13,73 bilhões de anos (com uma
margem de erro de apenas 0,12 bilhão
de anos), não estão fantasiando ou especulando. Estão fazendo uma afirmação baseada em medidas concretas
e irrefutáveis.
Todas as culturas de que temos registro tentaram de alguma forma tecer relatos de sua origem. Talvez os
relatos mais significativos de uma cultura sejam justamente seus mitos de
criação, as narrativas que contam como surgiram o mundo, os animais e as
pessoas. Esses mitos são sagrados,
marcando a relação entre a divindade
(ou divindades) criadoras e os humanos, sua criação. Mesmo que em algumas culturas não existam deuses criadores, as narrativas de criação do
mundo definem as forças criadoras de
suas crenças.
No relato mais popular em nossa
cultura, o Gênese bíblico, a força criadora gera o mundo ao separar a luz da
sombra. Passados 3.000 anos, reconstruímos esse relato, medindo as propriedades, se não dessa primeira luz divina e sobrenatural, da radiação que
de fato preenche o cosmo.
É inevitável traçar paralelos entre o
relato judaico-cristão de criação e o
modelo cosmológico do Big Bang. "Ah,
está vendo? Esses cientistas estão
simplesmente redescobrindo o que a
Bíblia já dizia há milênios." Na verdade, não é nada disso. A história científica da criação estará sempre incompleta, aprimorando-se a cada nova
descoberta. Ela independe da fé. Se
hoje podemos afirmar que o Universo
tem 13,73 bilhões de anos, que as primeiras estrelas surgiram quando ele
tinha 430 milhões de anos, nós o fazemos baseados em 400 anos de ciência.
São os dados que nos contam o que
ocorreu, dados obtidos por meio da
incrível inventividade humana. Se
existe algo de semelhante entre a Bíblia e o Big Bang é que ambos estão interessados na história da criação. E isso não é uma coincidência. Afinal, ambos refletem a mesma curiosidade humana de voltar ao passado, retraçando
os passos que levam até as nossas origens. A luz que nos separa da escuridão é a luz da nossa curiosidade.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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