São Paulo, segunda-feira, 30 de setembro de 2002

Próximo Texto | Índice

BIOTECNOLOGIA

Cientistas alteram DNA de micróbio para criar imunização contra vírus que causa câncer do colo do útero

Bactéria do queijo vira vacina na França

REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Uma bactéria usada há 8.000 anos na fabricação de queijo e manteiga está prestes a ganhar uma nova função: ajudar a combater o HPV, vírus responsável pela maior parte dos casos de câncer do colo do útero. Cientistas franceses transformaram o micróbio, chamado Lactococcus lactis, numa "vacina viva".
Os últimos resultados desse projeto foram apresentados durante o 48º Congresso Nacional de Genética, que aconteceu em Águas de Lindóia (interior de São Paulo). De acordo com Yves Loir, pesquisador do Inra (Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica, na sigla em francês), o desempenho da bactéria-vacina já está sendo testado em camundongos.
Loir diz que o micróbio também está sendo modificado geneticamente para produzir interleucina-12 -uma substância usada para combater determinadas formas de câncer.

Velho aliado
O Lactococcus lactis é conhecido da humanidade desde que esta aprendeu a criar derivados do leite: a ação fermentadora da bactéria é essencial para a fabricação de diversos laticínios.
Uma série de características do micróbio o tornam um bom candidato para o papel de vacina viva: ele não causa doenças e convive bem com o organismo humano. Diariamente, uma pessoa ingere 109 (o número 1 seguido de nove zeros) bactérias desse tipo.
Adaptado ao organismo humano, o L. lactis consegue colonizar o trato digestivo e o interior da vagina -coincidentemente, a região mais visada pelo vírus.

Perigo comum
O HPV (abreviação inglesa de papilomavírus humano) é bastante comum. A OMS (Organização Mundial da Saúde) calcula que entre 10% e 20% da população sexualmente ativa do planeta o carregue no organismo.
O vírus, porém, está longe de ser inofensivo: ele é a causa de quase todos os casos de câncer do colo do útero e também está envolvido nos cânceres de pênis, ânus e reto (a parte final do intestino grosso).
O HPV pode causar câncer porque, como todos os vírus, ele mistura seu código genético ao das células humanas que infecta, "sequestrando" o maquinário celular para produzir mais cópias de si mesmo. Nesse processo, os genes da própria célula saem dos eixos -e aí é que pode surgir o câncer.
A idéia dos pesquisadores franceses é preparar o organismo para uma eventual chegada do HPV (que é transmitido nas relações sexuais) com a ajuda do L. lactis. Para isso, eles modificaram geneticamente a bactéria para que ela produzisse a E7, uma proteína do vírus. "Suspeita-se que ela esteja envolvida no embaralhamento do ciclo celular", explica Loir.
O micróbio modificado secreta a proteína no organismo do hospedeiro, induzindo uma reação do sistema imune. Se o HPV verdadeiro entrasse em contato com o organismo, ele seria capaz de reconhecer a proteína e reagir rápida e eficazmente contra o vírus.
Antes disso, diz Loir, "ainda temos muito trabalho a fazer". Um dos dilemas dos pesquisadores é saber se seria mais eficaz uma vacina oral ou outra que fosse aplicada diretamente na vagina.
"Nesse caso, você induziria a imunidade na mucosa que é afetada pelo HPV", diz Vasco Azevedo, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), pesquisador que trabalha em parceria com Loir e seus colegas do Inra. Um grupo de cientistas mexicanos está testando as diferentes abordagens em camundongos.

Progresso em bovinos
Enquanto o veredicto sobre a vacina contra o HPV não sai, Azevedo e Sérgio Costa Oliveira, também da UFMG, estão conseguindo bons resultados usando o L. lactis para fazer uma "vacina viva" contra brucelose, doença causada pela bactéria Brucella que faz as vacas abortarem, dando prejuízos da ordem de R$ 100 milhões à pecuária no Brasil.
"Os testes feitos até agora em bovinos têm funcionado", afirma Azevedo, cujo grupo inseriu no DNA do L. lactis os genes que codificam as proteínas L7 e L12, típicas da Brucella e responsáveis por induzir uma resposta imune nos bovinos vacinados.
Com os problemas de fiscalização e os abatedouros clandestinos no país, não é incomum que carne contaminada com a bactéria chegue ao mercado, o que pode gerar problemas cardíacos se a carne for consumida.


Próximo Texto: Química: Catalisador melhora produção de fonte de "energia limpa" com luz
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.