|
Próximo Texto | Índice
BIOÉTICA
O australiano Peter Singer, que vem ao Brasil amanhã, diz que é preciso respeitar autonomia de paciente terminal
Para filósofo, eutanásia deve ser um direito
CLAUDIO ANGELO
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA
Não é ético negar ajuda a um paciente terminal que queira morrer. Contanto que a decisão seja
ponderada e livre, o suicídio é um
direito que deve ser respeitado. As
opiniões são do australiano Peter
Singer, 56, um dos filósofos mais
polêmicos da atualidade.
Partidário do utilitarismo, corrente segundo a qual as ações humanas devem ser julgadas em relação aos outros, não a princípios
morais, Singer defende idéias como a liberação dos animais e a
possibilidade de infanticídio no
caso de problemas neurológicos e
físicos incapacitantes.
Professor da Universidade de
Princeton, nos EUA, e autor de livros como "A Liberação dos Animais" e "Ética Prática", Singer
tem sido atacado por grupos antiaborto. Ele vem ao Brasil amanhã para participar do Sexto Congresso Mundial de Bioética, que
começa hoje e vai até o dia 3 na
Academia de Tênis, em Brasília.
De Varsóvia, Polônia, onde passava as férias, o filósofo falou à Folha sobre clonagem, os direitos
(inexistentes, para ele) do embrião e de eutanásia, tema de sua
apresentação em Brasília. Leia, a
seguir, trechos da entrevista.
Folha - O sr. diz que matar um bebê deficiente não equivale moralmente a matar uma pessoa e, algumas vezes, nem é errado. O sr. não
teme que esse argumento possa
ser usado para justificar experiências de clonagem humana, que podem produzir vários abortos e bebês deficientes?
Singer - Bem, qualquer pessoa
pode usar qualquer argumento
alheio e distorcê-lo em benefício
próprio, mas essa citação não tem
nada a ver com clonagem. Ela não
tem a ver com sugerir que está
bem produzir crianças que terão
deficiências, e sim com como nós
deveríamos agir quando, infelizmente, uma pessoa nasce com deficiências graves. Então, não se
trata de definir o que é errado e
certo em conscientemente entrar
numa situação na qual você poderia gerar uma criança assim.
Folha - O sr. acha que temos motivos para clonar seres humanos?
Singer - Realmente não. Suponho que deva haver um número
muito pequeno de indivíduos que
possam querer substituir um filho
que morreu ou algo assim, mas
não acho que nós tenhamos uma
boa razão para isso.
Folha - Muitos países, inclusive o
Brasil, se opõem à destruição de
embriões para pesquisa de células-tronco. Os embriões têm direitos?
Singer - Não, eu não acho que os
embriões sejam o tipo de entidade
que possa ter direitos. Eles não
podem sentir nada, não têm a capacidade de ter nenhuma experiência. Da forma como entendo
o que é necessário para ter direitos, embriões não podem tê-los.
Folha - E qual deveria ser o limite
para as pesquisas com embriões?
Singer - Bem, eu acho que, uma
vez que você tenha um ser capaz
de sentir dor, e, obviamente, um
ser com significância moral, você
precisa de alguma proteção, para
evitar o efeito da dor. Mas até você
ter essa consciência, que aparece
talvez 20 semanas após a concepção, não acho que nós precisemos
proteger o embrião ou feto em desenvolvimento por si. Então, eu
não diria que você precisa de limites à pesquisa. Você pode ter
preocupações em relação ao interesse dos pais genéticos, talvez alguém dizendo o que está sendo
feito com o embrião, ou talvez haja pesquisa que não seja recomendável, por outras razões.
Folha - Por exemplo?
Singer - Por exemplo, pesquisa
em hibridação de humanos com
animais provavelmente não é
uma coisa que devêssemos fazer.
Acho que as pessoas o fariam por
razões sensacionalistas, não por
interesse sério. Mas não acho que
o fato de ser um embrião humano
seja moralmente crucial.
Folha - O sr. concorda com a terapia de linhagem germinativa [pela
qual as características genéticas do
embrião podem ser manipuladas]?
Singer - Eu não a descarto, em
princípio. Acho que não estamos
no estágio de fazê-la com suficiente confiança, mas não vejo
objeções em princípio, se pudermos fazê-la direito e usá-la para
eliminar algumas doenças.
Folha - O sr. não acha que corre-se o risco de gerar cidadãos de primeira classe que possam praticar
um tipo de "racismo" genético?
Singer - Certamente eu acho que
há um risco, especialmente se o
modelo americano for usado. Por
modelo americano eu quero dizer
a idéia de que não seja usado dinheiro do governo, mas clínicas
privadas tenham a liberdade de
seguir em frente. E, claro, isso significa que só pessoas ricas podem
pagar e elas poderiam usar técnicas genéticas para melhorar suas
crianças e as outras pessoas não.
Mas, fora isso, não acho que seja
consequência necessária da genética o fato de que podemos criar
uma classe de pessoas superiores,
ou que se acham superiores.
Folha - O sr. disse que a legalização da eutanásia voluntária segue
os princípios éticos de Immanuel
Kant (1724-1804), ainda que o próprio Kant achasse que os princípios
levavam à conclusão de que o suicídio é errado. Como assim?
Singer - Kant não foi influenciado pelos princípios da própria filosofia moral. Ele foi obviamente
influenciado pela moral cristã
convencional de seu tempo. A argumentação dele sobre suicídio é
realmente muito ruim. Quer dizer, quando alguém se mata, contradiz uma lei da natureza, porque se todo ser que tivesse o desejo de se matar o fizesse, a natureza
não teria continuado, portanto, o
desejo de viver é algo básico na
natureza. Se alguém tem câncer
terminal e quer se matar, isso não
diz nada sobre a sobrevivência
das espécies.
Mas o que eu realmente quero
citar quando me refiro a Kant é o
seu princípio da autonomia, de
que devemos respeitar a autonomia de cada indivíduo. E respeitar
a autonomia de indivíduos que
querem morrer significa dar a eles
a assistência de que eles precisam
para morrer, e não forçá-los a
continuar vivos, quando eles
mesmos podem julgar a própria
qualidade de vida. Não é ético.
Próximo Texto: Panorâmica - Próxima Índice
|