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Perfil / Ana Rita Suassuna, 78

Era uma vez no sertão

Pesquisadora da gastronomia sertaneja lembra a infância no interior de Pernambuco e conta como enfrentava a escassez

LUIZA FECAROTTA
DE SÃO PAULO

O garçom apoiou sobre a mesa os coadores de café e as xícaras de cerâmica. Colocou o pó moído, a água quente.

"Não é uma coisa linda?", diz Ana Rita Suassuna, 78. "No sertão, você torrava o grão puro, mas tinha o café doce, torrado com rapadura."

E continua: "Tinha o café de pedra, também. Você aquecia pedras lisas e redondas, as deixava em brasa, aí botava o pó e despejava a água fria em cima. Era para quem tava no mato".

"Ontem é hoje, viu? Nós estamos aqui, hoje, falando do café que era de ontem, imagina, dos boiadeiros, dos tropeiros, dos vaqueiros."

FOGO BAIXO

Quem é Ana Rita Suassuna? Uma escritora? Uma cozinheira? "Não é nada disso aí", diz ela, falando sobre si mesma na terceira pessoa. "É alguém que escreveu um livro ['Gastronomia Sertaneja'] sobre uma experiência de sertão e sobre a comida. É a pessoa que juntou tudo isso: uma parte da comida brasileira que não tinha registros formais, era passada pela oralidade."

Prima do escritor Ariano Suassuna, Ana Rita é irmã de seis, mãe de três, avó de sete. É mais estudiosa do que cozinheira, mas vai para a cozinha vez ou outra, para fazer os pratos do sertão.

Não mexe em fogão moderno. "E como fazia fogo baixo no fogão a lenha?", pergunta. "A gente afastava as brasas com um ciscador." No sertão quase tudo era feito no fogo baixo, "apura o sabor".

Nascida na Paraíba, ela cresceu na fazenda dos pais, na região do Vale do Pajeú, no sertão de Pernambuco. Para chegar lá, saindo de Recife, levava um dia de trem, depois pegava ônibus e ainda andava duas horas a cavalo.

Foi ali, onde se plantava algodão e culturas de subsistência, que Ana Rita Suassuna se embrenhou na vida dos sertanejos, no colher, no fazer, no poupar.

SEM DESPERDÍCIO

Lá era assim, era preciso lidar com a seca, com a falta de comida. "A preocupação com a seca era uma coisa tão inerente ao dia a dia que ninguém desperdiçava nada."

Lembra o lema do pai: "Quem não guarda quando tem não tem quando precisa". E conta que o milho era armazenado na espiga, num cantinho da casa.

Os grãos das melhores espigas eram guardados debulhados em potes de barro ou em latas bem tampadas, lacradas com cera de abelha, resina de planta ou sebo de carneiro, para usar na plantação do inverno seguinte.

Naquelas terras, em que viveu até os dez anos, quando foi estudar em Recife, plantava-se milho e feijão.

Tinha o feijão-de-corda e o feijão de arrancar -"é um pezinho pequeno [e mostra com as mãos], um arbustinho que fica cheio de vagem".

E tinha o que se plantava nas vazantes, "a parte úmida junto de qualquer reservatório de água": batata, jerimum, melancia, melão.

BRINCAR DE COZINHA

Ao falar, Ana Rita volta sempre à escola. "Era dentro da minha casa, num terraço grande", lembra.

Uma das brincadeiras era o cozinhado. "Meu pai fez uma casinha de vara, coberta de palha, onde tinha as trempes" (aro de ferro com três pés, no qual se apoia panela sobre o fogo).

O cozinhado só podia ocorrer na fartura. "A gente ia pro roçado ou para a despensa da casa para tirar as coisas, arroz, feijão, o que fosse, e levava tudo para a casinha", ela se recorda. "Todo mundo fazia o que sabia. Saía comida de todo jeito, mas o que saísse todos eram obrigados a comer."

MUGUNZÁ

Existia um espaço perto de sua casa, aberto, onde os animais eram abatidos. Quando matava o porco, conta, tirava o sangue para fazer chouriço.

"Você abria o porco, tirava o toucinho com a banha toda, depois tirava a gordura do toucinho e salgava só o couro e secava. É um grandessíssimo tempero para o feijão."

Mesmo tempero que incrementava o xerém -milho cozido em água e sal, na forma básica, em tempo de seca- e o mugunzá -o milho sem casca, com leite de coco, cravo e canela, como um mingau. "Mu-gun-zá. Tem muito jeito de escrever, tem uns cinco, seis jeitos dicionariados."

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