São Paulo, quinta-feira, 12 de maio de 2011

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COZINHA SENTIMENTAL MEMÓRIAS DA PONTA DA LÍNGUA

A mexicana atrevida e sua avó parideira

A cozinheira Lourdes Hernández relembra o sabor das férias que passava com a avó em Ciudad Juárez, fronteira com os EUA

Depoimento a
PRISCILA PASTRE-ROSSI
DE SÃO PAULO

Minha avó engravidou 26 vezes. Coloque nessa conta três pares de gêmeos. Como a família morava no México, perto da fronteira com os EUA [em Ciudad Juárez, Chihuahua], muitos imigraram.
Então, aquela casa enorme, cheia de quartos -incluindo uma sala de parto, divertidíssima, onde se guardava de tudo-, ficou lá, esperando todos os anos pelas minhas férias. E férias em Ciudad Juárez eram, para mim, sinônimo de comer.
Todos os dias eu era acordada por um cheiro. Lá pelas 6h a casa ficava tomada pelo aroma do pão doce gostosíssimo que minha mãe e minha avó faziam. A primeira tarefa do dia era levantar logo da cama para passar manteiga naquele pão quentinho.
Também já estavam ali as tortilhas de trigo grandonas, com pasta de feijão e molho picante. O leite -de verdade, não esse que a gente toma- formava uma nata grossa.
Você o fervia, tirava a nata com uma espátula e a usava para untar o pão. Quando sobrava, minha avó guardava para fazer os bolos da tarde.
Todos as manhãs eu via minha avó tirando uma frigideira grande, de ferro, do forno. Daquelas que, de tanto cozinhar banha, tinham uma capa de gordura incrustada. Era uma capa branca, que começava a ficar transparente quando esquentava.
Ali eram fritos os ovos de gema mole, com bacon, acompanhados por uma batata cortada muito fina, torradinha. As manhãs eram tomadas pelo cheiro de pão, de feijão, de bacon e de ovos.
O resto do dia continuava em torno da cozinha -e da mesa, que ficava ali mesmo. Não era raro a gente se sentar no almoço e só levantar depois do jantar. Primeiro pelo sabor. Depois, pelo ritual.
O sabor, como já disse, ficava à cargo da minha avó. Ela nasceu em Puebla, um dos Estados mexicanos de culinária mais rica. Já morando em Ciudad Juárez, ela viajava quase 1.500 km até a Cidade do México só para comprar chile, temperos, panelas de barro e colheres de pau.
A parte do ritual era coisa de meu pai. Com ele, as "sobremesas" -como a gente chama o tempo conversando depois de comer- duravam horas. Ele era um grande contador de histórias. A gente ficava acordado até altas horas só para ouvi-lo, naquele momento mágico.
Uma coisa muito importante que eu aprendi com meu pai é que a comida, para ser desfrutada, precisa ser dividida com pessoas que sejam semelhantes a você.
Naquela época, para ser como a gente só podiam ser os tipos piratas [risos], pessoas de reputação duvidosa, malandros. As conversas sempre tinham esse "quê" de secretas, de assuntos proibidos fora daquele ambiente.
Lembro que, em uma dessas refeições, meu pai prometeu que me contaria quem era o "Mascarado de Prata" [da luta livre mexicana]. Ninguém sabia qual era o nome dele, era o que tinha de mais secreto para a gente!
Mas a minha grande lembrança de sabor ligado à infância é do que acontecia às seis da tarde, quando o sol começava a dar um respiro naquele calor de 40 graus.
Você ouvia o "tim-tim-tim" do sino de um vendedor que descia a rua cantarolando "raspados, raspados!". Eu imediatamente pedia para a minha mãe umas moedas para comprar uma raspadinha.
O moço ralava o gelo na hora, despejava num copo lindo e deixava cair o xarope de groselha, que pintava o gelo de vermelho. Por cima, colocava um marmelo cortado na metade, com sorvete de limão, chile e deixava cair um pouco de limão fresco.
Era uma coisa tão boa, mas tão boa... O marmelo parecia fechar a garganta. O líquido ajudava a abrir. E era uma deliciosa tortura.


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