São Paulo, quinta-feira, 18 de agosto de 2011

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NINA HORTA

A gastronomia no divã

Pensem. Há 30 anos as revistas e jornais tinham uma seção de receitas de comida. E só. De quando em quando uma crítica de restaurante, mas pouquíssimo, quase nada.
Estou falando do Brasil. De repente começamos a viajar e a saber do Guérard, do Bocuse, e a querer contar o que se comia e bebia.
As empregadas escassearam e era preciso ir para a cozinha. Então, vamos, mas com glória, sem ranger de dentes. As mulheres já tinham arranjado uns empregos ou carreiras que antes eram dos homens. Os próprios, ao ver as coisas apertarem para o lado deles, enfiaram um avental com gosto. Mas acharam por bem só cozinhar coisa de macho, como arroz de suã, feijoada, churrasco, rabada, cuscuz no vapor, cupim cozido, grandes peixes.
Outros glamourizaram o quanto puderam a situação. Cheiraram e cheiraram vinhos, inventaram martinis nunca dantes navegados.
E daí estamos em 2011 e de vez em quando me sinto rabugenta, porque as modas já tiveram tempo de ir e voltar, não aguento essa história de vintage ser da minha geração. Como vintage? Vintage de 1990? Dos 70? Vintage? Essa aflição me deu ao receber e-mails de um rapaz de conhecida revista que precisava fazer uma matéria, mas como tinha nascido ontem, não sabia o que se passara anteontem. Já nasceu com os pratos bonitos, sem gordura, comidas mais leves, e agora, José?
Só existem de verdade para essa novíssima geração os que estão na TV. Jamie Oliver nunca será vintage, continua com sua cara de 30 anos e Nigella também. Mas, não vale, menino, eles são atores, estamos falando de chefs nada virtuais.
E me parece que não passamos a história com muito ânimo ou garbo para a frente porque eles não sabem de nada, estão começando tudo de novo. Descobrindo o descoberto, escarafunchando a terra atrás de raízes.
Acho que não vai ser por aí, não, a complexidade é enorme, a economia, os enormes conglomerados de comida, a Bolsa, a Amazônia, a China, o escambau.
Uma boa perspectiva de futuro é esse poder todo se converter e botar olho bom na comida, olho de engordar, olho honesto. Sem deixar de ganhar seu rico dinheirinho. Deve ser possível. Ah, se eu um dia soubesse que essa cozinha demoraria tanto para saber quem é, para onde vai, nem teria me metido com ela.
Ô, coisa mais burra, anos de análise e nem Freud conseguiria arrancá-la do divã. Não se define daqui nem de lá, puxada de um lado pelas raízes, de outro pela globalização, sem meio-termo possível.
As ansiedades são as de todo adolescente. Vamos comer carne ou alface? Com dendê ou tucupi? Quem estava louca, a vaca ou eu? Aspirina ou limão? Saquinhos de pano ou de plástico? Meu sonho é acordar um dia e estar tudo como dantes no quartel de Abrantes. Na mesa, arroz, feijão, bife batidinho, bolinho de mandioca, goiabada com queijo. O assunto "comida" esgotado. E a paz reinará no palato do mundo.
Exaustos, os bichos salvos, os com fome alimentados, os gordos mais magros, há que sentar à mesa e comer um miojo distraídos, ligar a TV e assistir ao jogo de futebol. A mesma coisa entra e sai ano, gente, será que estou velha ou é impressão?

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