São Paulo, quinta-feira, 01 de fevereiro de 2001

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PASQUALE CIPRO NETO

Palavras traiçoeiras

Há duas ou três semanas, escrevi sobre termos médicos. "Má-formação" (e sua variante espúria "malformação", comum na literatura médica e registrada pelos dicionários e pelo "Vocabulário Ortográfico"), "liquor" (e sua variante "líquor") e "cateter" foram alguns dos termos comentados.
Pois bem. Ontem, na Via Dutra, policiais impediram um assalto a uma transportadora. Houve tiroteio e um delegado foi ferido. No rádio, um repórter informou que uma bala atingiu a veia "femural" do delegado. A veia é mesmo "femural"?
Aviso logo que não me atrevo a entrar no mérito da localização e da função da veia. Limito-me à questão linguística. Imbuído de boa-fé, o repórter deve ter associado o adjetivo ao substantivo, o que o levou a manter a base deste naquele. E foi traído. O substantivo é "fêmur" (do latim "femur"), mas o adjetivo é "femoral" (do latim "femoris"). A veia é não é "femural"; é "femoral".
Caso único? Antes fosse! No território médico, o tórax se encarrega de fornecer mais um. Diferentemente do que talvez o substantivo possa sugerir, o adjetivo é "torácico", com "c". A caixa é torácica, e não "toráxica". Em vários termos técnicos ligados ao tórax aparece o "c", e não o "x" ("toracografia", "toracostomia", "toracoscopia", entre outros).
A "traição" não é privilégio da terminologia médica. Fora dela, os exemplos são numerosos. Qual é o nome da qualidade possuída por quem é discreto? Será "discreção", como sugere o adjetivo? Não é. É "discrição", com "i" mesmo, o que também vale para o antônimo ("indiscrição"). Quem é discreto age com discrição; quem é indiscreto, com indiscrição.
Outra dupla perigosa é formada pelo verbo "estender" e pelo substantivo "extensão". As duas vêm do latim ("extendere" e "extensione", respectivamente). Por um dos tantos caprichos de nosso complicado sistema gráfico, o "x" ficou no substantivo, mas foi trocado por "s" no verbo. Não é à toa que, na parte de automóveis dos classificados dos jornais, as formas "estendida" e "extendida" se alternam nos anúncios de picapes que têm cabina (ou "cabine", tanto faz) estendida (com "s", já que vem de "estender").
Os adjetivos baseados em nomes de escritores importantes também são problemáticos. Muitas vezes se lê "rodigueano", quando se trata de algo relativo a Nélson Rodrigues e seu universo dramático. A forma correta é "rodriguiano", com "i". Temos aí o sufixo "-iano", que designa procedência, origem. Também terminam em "-iano" os adjetivos "rosiano" (relativo a Guimarães Rosa) e "camoniano" (relativo a Luís de Camões).
Por fim, uma dupla mais do que traiçoeira: "catequese" e "catequizar". Haja cuidado para não errar os membros da família! É bom lembrar que "catequizado", "catequização" ("ato de catequizar"), "catequizador" e "catequizante" vêm de "catequizar", portanto se grafam com "z".
Depois desse festival de "traições", torna-se difícil dar este conselho: em geral, as palavras derivadas tendem a manter a base gráfica das primitivas. Se quiser (e puder), acredite. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
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