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PASQUALE CIPRO NETO
Palavras traiçoeiras
Há duas ou três semanas, escrevi sobre termos
médicos. "Má-formação" (e sua
variante espúria "malformação",
comum na literatura médica e registrada pelos dicionários e pelo
"Vocabulário Ortográfico"), "liquor" (e sua variante "líquor") e
"cateter" foram alguns dos termos comentados.
Pois bem. Ontem, na Via Dutra,
policiais impediram um assalto a
uma transportadora. Houve tiroteio e um delegado foi ferido. No
rádio, um repórter informou que
uma bala atingiu a veia "femural" do delegado. A veia é mesmo
"femural"?
Aviso logo que não me atrevo a
entrar no mérito da localização e
da função da veia. Limito-me à
questão linguística. Imbuído de
boa-fé, o repórter deve ter associado o adjetivo ao substantivo, o
que o levou a manter a base deste
naquele. E foi traído. O substantivo é "fêmur" (do latim "femur"),
mas o adjetivo é "femoral" (do latim "femoris"). A veia é não é "femural"; é "femoral".
Caso único? Antes fosse! No território médico, o tórax se encarrega de fornecer mais um. Diferentemente do que talvez o substantivo possa sugerir, o adjetivo é
"torácico", com "c". A caixa é torácica, e não "toráxica". Em vários termos técnicos ligados ao tórax aparece o "c", e não o "x"
("toracografia", "toracostomia",
"toracoscopia", entre outros).
A "traição" não é privilégio da
terminologia médica. Fora dela,
os exemplos são numerosos. Qual
é o nome da qualidade possuída
por quem é discreto? Será "discreção", como sugere o adjetivo? Não
é. É "discrição", com "i" mesmo, o
que também vale para o antônimo ("indiscrição"). Quem é discreto age com discrição; quem é
indiscreto, com indiscrição.
Outra dupla perigosa é formada
pelo verbo "estender" e pelo substantivo "extensão". As duas vêm
do latim ("extendere" e "extensione", respectivamente). Por um
dos tantos caprichos de nosso
complicado sistema gráfico, o "x"
ficou no substantivo, mas foi trocado por "s" no verbo. Não é à toa
que, na parte de automóveis dos
classificados dos jornais, as formas "estendida" e "extendida" se
alternam nos anúncios de picapes
que têm cabina (ou "cabine", tanto faz) estendida (com "s", já que
vem de "estender").
Os adjetivos baseados em nomes de escritores importantes
também são problemáticos. Muitas vezes se lê "rodigueano",
quando se trata de algo relativo a
Nélson Rodrigues e seu universo
dramático. A forma correta é "rodriguiano", com "i". Temos aí o
sufixo "-iano", que designa procedência, origem. Também terminam em "-iano" os adjetivos "rosiano" (relativo a Guimarães Rosa) e "camoniano" (relativo a
Luís de Camões).
Por fim, uma dupla mais do que
traiçoeira: "catequese" e "catequizar". Haja cuidado para não
errar os membros da família! É
bom lembrar que "catequizado",
"catequização" ("ato de catequizar"), "catequizador" e "catequizante" vêm de "catequizar", portanto se grafam com "z".
Depois desse festival de "traições", torna-se difícil dar este conselho: em geral, as palavras derivadas tendem a manter a base
gráfica das primitivas. Se quiser
(e puder), acredite. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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