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ARTIGO
Arqueologia da tortura
RONALDO VAINFAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
A tortura faz parte da história do Brasil desde o seu
primeiro século. Antes de tudo,
por causa da escravidão que, conferindo aos senhores a propriedade do corpo de seus cativos, facultava-lhes o direito de castigá-los.
Se é verdade que a legislação régia impunha limites, restringindo
o número de açoites e outros abusos, não faltam exemplos de tremendos suplícios aplicados aos
cativos do Brasil antigo. Documentos do século 16 registram
atrocidades perpetradas contra
índios escravizados, a exemplo de
um gentio assado numa forja por
um senhor destemperado ou de
uma índia lançada viva -e grávida- na fornalha de um engenho, na Bahia, simplesmente porque fizera intrigas de seu amo
com a sinhá da casa-grande.
No século 18, o campeão das
torturas contra escravos negros
foi, sem dúvida, Garcia d'Ávila
Pereira de Aragão, senhor da Casa da Torre. Mutilava escravos
por qualquer motivo, em especial
na Sexta-Feira Santa, queimava-os, feria-os de tantas maneiras
que foi denunciado à Inquisição
por escrito, com o arrolamento de
várias testemunhas. Sua conduta
chegou mesmo a chocar uma sociedade na qual a violência era
banalizada e até legalizada.
No mais das vezes, o suplício de
escravos funcionava como punição, espécie de castigo exemplar
que se aplicava a um escravo
transgressor, por exemplo um fugitivo, à vista dos demais. Violência física combinada com pedagogia do medo. Mas houve ocasiões
em que escravos foram torturados
como simples suspeitos de crimes
imaginários.
Foi o que ocorreu em Ribeirão
do Carmo, Minas Gerais, pelos
idos de 1745, quando a negra Luzia da Silva Soares, acusada de
preparar malefícios contra a família senhorial, foi barbaramente
torturada, queimada com tenazes de ferro em brasa, pendurada
numa escada e queimada com fogo nos pés.
É claro que Luzia confessou todos os malefícios que lhe imputavam, mas ainda assim seus amos
a encaminharam à Inquisição
sob a acusação de feitiçaria. O estado da mulher era tão deplorável que a própria Inquisição de
Lisboa absolveu-a e lhe deu alforria, julgando excessiva a tortura
que lhe haviam infligido.
A escravidão estimulava o suplício, mas não o inventou. O
exemplo vinha de longe, de Portugal, da própria Europa do Antigo Regime, que não reconhecia,
como princípio, a integridade do
corpo humano, sobretudo no caso
de suspeitos e condenados.
Os condenados por grandes crimes, como os delitos de lesa-majestade, eram executados com requintes de crueldade, atenazados,
desmembrados, tudo em praça
pública, num autêntico espetáculo popular. A Inquisição, como se
sabe, queimava os hereges mais
pertinazes, embora em geral os
garroteasse antes, fiel à "misericórdia" constante no estandarte
do Santo Ofício.
Mas uma coisa é o suplício do
condenado à pena capital, sempre uma punição espetacular, outra a tortura, nas masmorras, como técnica de interrogatório. No
Antigo Regime luso-brasileiro, isto era perfeitamente legal, como
na Europa dos reis absolutistas. O
livro V das Ordenações Filipinas
(1603) considerava lícito o emprego do tormento como meio de extrair confissões de réus teimosos
em negar acusações notórias.
A Inquisição também utilizou o
tormento à farta, embora se limitasse ao uso do potro e da polé,
instrumentos que apertavam as
articulações, no primeiro caso, ou
deslocavam membros, no segundo, sem derramar sangue. Como
tribunal religioso, a Inquisição
era proibida de fazê-lo.
Juristas ilustrados do século 18
puseram em xeque a licitude moral e a eficácia da tortura como
técnica de interrogatório. Apontaram a desumanidade dos tormentos e sua falibilidade. Houve
quem dissesse que o tormento era
a melhor maneira de absolver um
culpado robusto e condenar um
inocente fraco, e por isso devia ser
abolido. Pouco a pouco, os códigos criminais foram deixando de
lado, seja o suplício exemplar nas
penas capitais, seja a tortura para
obter confissões de culpa. O Código Criminal do Império do Brasil
seguiu este exemplo, em 1830.
Mas a tortura foi capaz de atropelar, no Brasil e no Ocidente, os
princípios iluministas mais elevados. Pôde renascer e frutificar nos
momentos sombrios de autoritarismo e persiste, informalmente,
no seio da sociedade, a despeito
de sua iniqüidade. São os fantasmas do Antigo Regime que se fazem presentes ainda hoje, castigando suspeitos de antemão, e assombrando os dias e as noites de
todos.
Ronaldo Vainfas é professor de história
moderna na Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de "Os Protagonistas
Anônimos da História" (ed. Campus), entre outros livros.
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