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MOACYR SCLIAR
Melhorando Picasso
Ela dera a Picasso, ainda que involuntariamente, uma colaboração, que o mestre poderia considerar preciosa
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Um importante quadro do pintor espanhol Pablo Picasso foi danificado quando uma mulher perdeu o equilíbrio e caiu
sobre a obra, no Museu Metropolitan,
em Nova York, na última sexta-feira. O
acidente deixou um rasgão de cerca de 15
centímetros de comprimento no canto
inferior direito da tela "O Ator", pintada
no inverno entre 1904 e 1905, e marca a
transição do trabalho do artista da chamada "fase azul" para a "fase rosa". A
obra retrata um homem posando diante
de um fundo abstrato. Cotidiano, 26 de
janeiro de 2010
ELA NÃO entendia nada de arte,
não gostava de arte, e sobretudo detestava museus. Mas
estavam fazendo turismo em Nova
York e, como disse o marido -ele
sim, um homem culto, familiarizado
com a obra dos grandes artistas- ir
a Nova York e não visitar o famoso
Museu Metropolitan era um verdadeiro absurdo. Coisa da qual ela acabou se dando conta; a última coisa
que queria era voltar para o Brasil e
ouvir de uma de suas metidas e arrogantes amigas um comentário do tipo: "Mas como, você foi a Nova York
e não visitou o Metropolitan?"
Aceitou, pois, a sugestão do esposo, impondo algumas condições. A
visita seria curta (e seguida de uma
excursão ao Macy's e a um fino restaurante); e ele a pouparia de ver as
obras mais complicadas, aquelas
que a pessoa nunca sabe se se trata
de arte ou de brincadeira de mau
gosto.
Foram, pois. Como ela previa,
achou aquilo uma chateação; a todo
instante consultava o relógio. Mas
aguentou razoavelmente até o momento em que o marido disse: "Vamos dar uma olhada nas obras do Picasso".
Aquilo era demais. Porque, embora inculta, ela sabia que Picasso era
sinônimo de quadros bizarros, um
olho aqui, um nariz ali, nada a ver
com nada. Ele, porém, prometeu
que aquilo encerrava a jornada artística, e ela, ainda que de má vontade,
o seguiu. Detiveram-se diante de
uma tela intitulada "O Ator".
E então, o inesperado. Olhando o
homem jovem que ali estava representado, e que parecia mirá-la fixamente, ela se sentiu como que transportada para um mundo estranho,
um mundo onde nunca estivera antes. De repente, compreendia a arte.
Não: de repente a arte penetrava-a,
se apossava dela. Uma verdadeira
revelação, uma epifania; a emoção
foi tão forte que a fez cambalear. Ela
caiu sobre a tela.
O marido e outras pessoas que estavam ali socorreram-na. Recuperou-se, e então viu que, ao cair, produzira um rasgão na tela. Um rasgão
que tornara o quadro completamente diferente, surpreendente, mesmo. Ou seja: ela dera a Picasso, ainda
que involuntariamente, uma colaboração, que o mestre poderia (e deveria) considerar preciosa, um novo
horizonte em seu trabalho.
Foi o que disse ao esposo: "Pode
ser que o Picasso até me agradeça
pelo que fiz. Pode ser até que me
convide para colaborar com ele." Ele
sorriu: "Difícil, minha querida. O Picasso já morreu."
Com o que ela calou-se. Muito irritada: tal como pensava, os artistas
são uns enganadores. Não se pode
confiar neles: morrem quando menos se espera, sem ao menos agradecer pela colaboração que seria decisiva em sua obra.
MOACYR SCLIAR escreve nesta página, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.
moacyr.scliar@uol.com.br
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