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OPINIÃO
Equívocos ecumênicos
ROSELI FISCHMANN
Alguns equívocos cercam o "ensino religioso ecumênico", cuja
idéia teria sido aprovada pela
CNBB para as escolas públicas
brasileiras, conforme reportagem
publicada no dia 18 de abril pela
Folha, na página 3-7.
Primeiro, é uma violação flagrante da liberdade de consciência
e de crença. Se a "atitude ecumênica" é esposada por alguns, não é
mais ou menos virtuosa que a
não-abertura à busca de pontos
comuns entre religiões -é só escolha. Do ponto de vista do Estado, a livre escolha do cidadão deve
ser garantida -e isso inclui a
não-imposição de certa opção, seja qual for.
Não é também verdadeira a suposição frequentemente invocada
de que o ecumenismo significaria
atitude de respeito e aproximação
entre religiões, formando crianças
e jovens mais solidários.
O respeito ao outro independe
de existirem pontos em comum
entre livres escolhas no campo da
consciência e da crença. À educação cabe promover a compreensão
de que não é necessário encontrar
"denominadores comuns" para
que se pratique o respeito mútuo,
assim como a compreensão de que
cada cidadão tem direito a escolher livremente sua crença, mudar
essa escolha ao longo da vida, se
assim decidir, e não ter crença nenhuma, se assim ditar sua consciência.
Além disso, o ecumenismo imposto pelo Estado significaria também uma flagrante violação do direito de liberdade de associação.
Há religiões, denominações e seitas que não aceitam o ecumenismo, assim como existem pessoas,
movimentos e grupos, no interior
de cada opção religiosa, que não se
dispõem a essa agregação. Tal atitude é também direito de cidadania e não significa, como já vimos,
desrespeito à imensa gama de opções presentes neste país.
A própria menção de que "o
ecumenismo prevê que sejam estudadas nas escolas as principais
religiões existentes no Brasil" traz
embutida classificação e priorização que violam o princípio fundamental da Constituição e dos Direitos Universais da Pessoa Humana da igualdade entre os cidadãos.
Qual seria o critério para escolha
dessas religiões? O espírito desse
tipo de escolha fica transparente
quando a reportagem da Folha
menciona "incluindo o judaísmo
e as religiões afro-brasileiras".
Fica evidenciado, conforme
mencionado na reportagem, que o
ponto crucial é a remuneração dos
professores de ensino religioso,
incluindo uma "estratégia" por
etapas de mudança da LDB: agora
se diz que se incluem todos, depois
se reivindica a exclusividade. Agora se ameaça "entrar na Justiça";
depois da "conquista" do ecumenismo, mantém-se a ameaça.
As ameaças revelam apenas o conhecimento de que sabem qual seria a decisão judicial. Não seria a
favor, sem dúvida, de propostas
que violam tantas liberdades, incluindo as de fiéis da própria religião proponente e que não a aceitam -o que é seu direito como cidadãos frente ao Estado laico, ainda que submetidos a uma hierarquia eclesiástica, do ponto de vista
de sua escolha religiosa.
Não se trata de criar "duas categorias de professores de escola",
mas de atender o significado do
sistema jurídico brasileiro, onde
"a César o que é de César e a Deus
o que é de Deus". O regime de separação Estado-religiões cria a
distinção não entre dois tipos de
professor, mas entre dois tipos de
conteúdo: um, universal, obrigatório para todos os cidadãos em fase de ensino fundamental; outro,
facultativo, que depende da escolha e livre manifestação dos pais,
responsáveis e do próprio aluno.
A falta de discernimento nesses e
em outros pontos, assim como
qualquer indução por parte do Estado à escolha garantida pela
Constituição, constituirá violação
de liberdades fundamentais, o que
é incompatível com a formação
que se requer da escola pública para a vida democrática.
Roseli Fischmann, 43, é professora livre-docente associada e presidente da Comissão Coordenadora de Pedagogia da Faculdade de Educação da USP.
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