São Paulo, quinta-feira, 01 de junho de 2006

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PASQUALE CIPRO NETO

O trambique quadrado

Com o usual brilhantismo, Rossi faz a "análise do discurso", ou seja, desvenda as entrelinhas da mensagem

CLÓVIS ROSSI, meu eterno herói, escreveu nesta semana bela análise de uma peça publicitária em que se exaltam frivolidades, espertezas, trambiques etc. Se você não se lembra da propaganda (de cerveja, para variar), refresco sua memória: quando a "Argentina" está para marcar, as traves se arredondam e "trafegam" pelo gramado. No texto ("O Trambique que Desce Redondo"), mestre Rossi - com seu costumeiro brilhantismo- faz o que se chama de "análise do discurso", ou seja, desvenda as entrelinhas da mensagem. E o faz sem os delírios algumas vezes presentes nesse tipo de texto. Em outras palavras, Rossi não vê chifre em cabeça de cavalo. A cereja no bolo do palestrino Rossi vem nesta passagem: "É a apologia do crime, pequeno crime, mas crime, como os brasileiros praticamos diariamente ao invadir a faixa do pedestre, ao ultrapassar pela direita, ao estacionar em fila dupla, ao subornar o guarda...". Notou o negrito em "praticamos", caro leitor? Na tentativa de desvendar as entrelinhas do texto de Rossi, pode-se dizer que o emprego do verbo na primeira do plural revela que o articulista se inclui na lista dos que praticam "pequenos crimes". Mais um ponto para Rossi, que, também diferentemente do que fazem alguns dos "especialistas" na análise do discurso, não se julga vestal ou acima de qualquer suspeita, não age como as pessoas que exigem verdade, mas mentem ou mentiram quando lhes convém ou conveio, não se supõe fora da realidade que denuncia etc. Antes que alguém pergunte se "é válido" o recurso empregado por Rossi ("os brasileiros praticamos"), vou logo dizendo que esse procedimento é mais do que usual e consagrado na língua. Trata-se de um caso de silepse, "figura pela qual a concordância das palavras se faz de acordo com o sentido e não segundo as regras da sintaxe" ("Aurélio"). Tradução: ao não empregar o verbo em concordância com o sujeito da oração ("os brasileiros"), ou seja, ao não flexioná-lo na terceira pessoa do plural, mas na primeira do plural ("nós"), Rossi não ajusta o verbo ao que diz, mas ao que pensa ("Nós, os brasileiros, praticamos pequenos crimes"). Temos aí um caso de silepse de pessoa, já que houve alteração na flexão do verbo (da "normal", que seria a terceira do plural, para a siléptica -a primeira do plural). No "Aurélio", há um belíssimo exemplo desse caso de silepse: "Quanto à pátria da Origem, todos os homens somos do Céu" (Padre Manuel Bernardes, "Nova Floresta"). A silepse se dá no par "todos/somos" (com "todos", o normal é o emprego da terceira do plural -"todos são"). Em "Vossa Excelência é ingênuo ou tolo mesmo?", ocorre silepse de gênero (os adjetivos "ingênuo" e "tolo", masculinos, não concordam com a expressão "Vossa Excelência", feminina, mas com o ser representado por esse pronome de tratamento -um prefeito, governador, presidente, vereador, deputado, senador, ministro, juiz etc.). Por fim, em "Essa família é muito unida, brigam por qualquer..." (da trilha do programa "A Grande Família, da TV Globo), ocorre silepse de número. A flexão de "brigam" não se dá em sintonia com a forma da palavra "família", mas com o seu sentido ("muitas pessoas"). É isso.

@ - inculta uol.com.br


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