|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PASQUALE CIPRO NETO
O trambique quadrado
Com o usual brilhantismo, Rossi faz a "análise do discurso", ou seja, desvenda as entrelinhas da mensagem
CLÓVIS ROSSI, meu eterno herói, escreveu nesta semana
bela análise de uma peça publicitária em que se exaltam frivolidades, espertezas, trambiques etc.
Se você não se lembra da propaganda (de cerveja, para variar), refresco
sua memória: quando a "Argentina"
está para marcar, as traves se arredondam e "trafegam" pelo gramado.
No texto ("O Trambique que Desce Redondo"), mestre Rossi - com
seu costumeiro brilhantismo- faz o
que se chama de "análise do discurso", ou seja, desvenda as entrelinhas
da mensagem. E o faz sem os delírios
algumas vezes presentes nesse tipo
de texto. Em outras palavras, Rossi
não vê chifre em cabeça de cavalo.
A cereja no bolo do palestrino
Rossi vem nesta passagem: "É a apologia do crime, pequeno crime, mas
crime, como os brasileiros praticamos diariamente ao invadir a faixa
do pedestre, ao ultrapassar pela direita, ao estacionar em fila dupla,
ao subornar o guarda...".
Notou o negrito em "praticamos", caro leitor? Na tentativa de
desvendar as entrelinhas do texto
de Rossi, pode-se dizer que o emprego do verbo na primeira do plural revela que o articulista se inclui
na lista dos que praticam "pequenos crimes". Mais um ponto para
Rossi, que, também diferentemente do que fazem alguns dos "especialistas" na análise do discurso,
não se julga vestal ou acima de
qualquer suspeita, não age como as
pessoas que exigem verdade, mas
mentem ou mentiram quando lhes
convém ou conveio, não se supõe
fora da realidade que denuncia etc.
Antes que alguém pergunte se "é
válido" o recurso empregado por
Rossi ("os brasileiros praticamos"),
vou logo dizendo que esse procedimento é mais do que usual e consagrado na língua. Trata-se de um caso de silepse, "figura pela qual a
concordância das palavras se faz de
acordo com o sentido e não segundo as regras da sintaxe" ("Aurélio").
Tradução: ao não empregar o
verbo em concordância com o sujeito da oração ("os brasileiros"),
ou seja, ao não flexioná-lo na terceira pessoa do plural, mas na primeira do plural ("nós"), Rossi não
ajusta o verbo ao que diz, mas ao
que pensa ("Nós, os brasileiros,
praticamos pequenos crimes").
Temos aí um caso de silepse de
pessoa, já que houve alteração na
flexão do verbo (da "normal", que
seria a terceira do plural, para a siléptica -a primeira do plural). No
"Aurélio", há um belíssimo exemplo desse caso de silepse: "Quanto à
pátria da Origem, todos os homens
somos do Céu" (Padre Manuel Bernardes, "Nova Floresta"). A silepse
se dá no par "todos/somos" (com
"todos", o normal é o emprego da
terceira do plural -"todos são").
Em "Vossa Excelência é ingênuo
ou tolo mesmo?", ocorre silepse de
gênero (os adjetivos "ingênuo" e
"tolo", masculinos, não concordam
com a expressão "Vossa Excelência", feminina, mas com o ser representado por esse pronome de
tratamento -um prefeito, governador, presidente, vereador, deputado, senador, ministro, juiz etc.).
Por fim, em "Essa família é muito
unida, brigam por qualquer..." (da
trilha do programa "A Grande Família, da TV Globo), ocorre silepse
de número. A flexão de "brigam"
não se dá em sintonia com a forma
da palavra "família", mas com o seu
sentido ("muitas pessoas"). É isso.
@ - inculta uol.com.br
Texto Anterior: Perfil: Novo titular atuou na pasta nos anos 90 Próximo Texto: Trânsito: 12ª Maratona de São Paulo interdita trânsito no domingo Índice
|