São Paulo, domingo, 01 de junho de 2008

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GILBERTO DIMENSTEIN

Uma estrela na linha de passe


Nenhuma atriz brasileira veio de tão baixo e subiu tão alto quanto Sandra Corveloni, eleita melhor atriz em Cannes

O DESFECHO PREVISÍVEL da vida de Sandra Corveloni seria a derrota profissional -migrante, filha de pais quase sem escolaridade, moradora da periferia de São Paulo e estudante de escola pública. Mas nenhuma atriz brasileira veio de tão baixo e subiu tão alto em reconhecimento internacional. Como ela ultrapassou tantas barreiras para ser eleita, na semana passada, a melhor atriz no Festival de Cannes?
Apenas o seu talento não explicaria esse desfecho. Nem a habilidade de seus diretores, Walter Salles e Daniela Thomas, no filme "Linha de Passe", em que Sandra é uma mãe enfrentando as agruras da periferia, onde a falta de perspectiva transforma o futebol num dos poucos sonhos disponíveis aos jovens. Para ir tão longe, Sandra precisou colocar-se, na própria vida, na linha de passe desde menina, ela precisou se meter num roteiro de aprendizados.

 

O caso dela me levou a tentar comprovar o que tenho observado em personagens periféricos que se destacam profissionalmente: além do talento e da força de vontade acima da média, existem sempre fortes referências familiares associadas ao prazer ou à importância do aprender.
Pedi-lhe que contasse sobre as figuras marcantes de sua vida. Sobressaiu a imagem do avô, José Crepaldi, agricultor, pobre, que pouco freqüentou a escola, mas vivia agarrado a um grosso livro de veterinária. "O livro e meu avô eram quase inseparáveis. Era a sua bíblia." Lia e observava, curioso, como os veterinários profissionais tratavam os animais. Gravava o nome dos remédios e dos tratamentos.
Aquele agricultor, mesmo sem escolaridade, virou um veterinário autodidata e começou a ganhar alguns trocados porque era chamado para tratar de animais. A menina carregou para sempre a imagem do avô, em deleite, agarrado ao livro esgarçado. O velho morreu pobre -mas realizado.
 

Clarice, a mãe de Sandra, nunca foi à escola, mas também trouxe de casa - ela já observava o pai encantado com a veterinária- a importância do conhecimento. Do seu jeito, ela percorreu a mesma trajetória do prazer em aprender inventava receitas, criava modelos de roupas ou construía móveis. "Minha mãe sempre tinha uma história para contar de alguma coisa que ela tinha feito."
Nem que fosse a adaptação de uma receita de bolo que ouvira no rádio ou na televisão. Exigia que a filha estudasse e que as lições, que lhe eram incompreensíveis, estivessem bem-feitas.
 

Sandra não precisava receber cobranças. Lembra-se de uma professora da primeira série, chamada Dona Gema, que dava ares de festa para a escola. Ensinava cantigas de roda, contava histórias tiradas de livros coloridos, convertia papel e cola em peças de arte. Durante toda a sua trajetória em escola pública, sempre participou do que lhe ofereciam: grêmio, dança, coral, gincana, teatro, jornal.
Todo esse entusiasmo cultural dava-lhe satisfação, mas dificilmente seria fonte de renda. Ingressou num curso técnico gratuito do Senai e, depois, entrou numa faculdade de engenharia algo que nem remotamente seria acessível a qualquer pessoa de sua família. Não era o suficiente. Podia ter parado aí, com salário, carteira assinada, e já estaria muito bem.
 

Sua paixão estava na carreira de atriz, descoberta desde que participou de oficinas gratuitas no Sesc. A ex-futura engenheira química preferiu o palco e partiu para estudar teatro no Tuca. Fez de tudo para sobreviver. Até animação de festinha infantil. Possivelmente ser a estrela reconhecida em Cannes era, até a semana, passada, uma possibilidade tão remota quanto seu avô, autodidata, ter sido tratado como doutor.
Além do reconhecimento artístico, o prêmio serve como condecoração ao prazer de se reinventar de uma uma menina que ganhou holofotes em Cannes, mas cujo futuro começou a ser escrito com palavras científicas de um obscuro livro de veterinária.
 

PS- Para participar do filme "Linha de Passe", Sandra teve de voltar a morar na periferia. Viu e sentiu a desesperança dos jovens, fora da linha de passe, morando em ambientes esgarçados - estão mais próximos da linha de tiro. Isso ajuda a explicar o inferno das escolas, onde professores são vítimas da violência cotidiana de tentar ensinar indivíduos sem perspectiva, muitos dos quais nunca viram um adulto perseguindo um projeto e apostando no conhecimento. Como estamos metidos numa espécie de guerra civil, reflexo da marginalidade juvenil, o caso de Sandra é um roteiro que mostra que o combate à violência começa com a possibilidade de que cada indivíduo se sinta capaz de descobrir um talento o que começa na família e prossegue na escola.

gdimen@uol.com.br


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