São Paulo, segunda-feira, 01 de julho de 2002

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MOACYR SCLIAR

O último concerto

O tenor italiano Luciano Pavarotti afirmou que encerrará sua carreira quando completar 70 anos, em outubro de 2005. "Não vou cantar nem mesmo quando estiver tomando banho", afirmou. Ilustrada, 27.jun.2002

 

Interromper a carreira não será difícil, mesmo porque há para isso um forte motivo: se é necessário parar, e todos têm de parar um dia, melhor fazê-lo por iniciativa própria, em um evento capaz de marcar época. Um gigantesco concerto, por exemplo, ao ar livre, dezenas de milhares de pessoas assistindo a ele e aplaudindo delirantemente, e, no final, no gran finale, a ária musical mais adequada para uma derradeira apresentação: "Nessun dorma", da ópera "Turandot", de Giacomo Puccini. Pela beleza da música, obviamente, mas também por causa da frase final, Al'alba vincerò, vincerò, vincerò. "Vencerei": poderá haver palavra mais adequada para quem assume, com coragem, o seu destino? Trovoada de aplausos, gritos de delírio, a consagração eterna. E, depois disso, o merecido repouso, o ócio com dignidade, as conferências, a publicação do livro de memórias... Nada como um futuro devidamente equacionado para proteger contra possíveis amarguras.
Relativamente fácil, portanto. Como fácil lhe será recusar os pedidos para voltar a cantar: "Uma vez só, mestre! Uma única vez!". Com um sorriso magnânimo, ele lembrará ao mundo que promessa é promessa: quem tem palavra não pode voltar atrás. E receberá os suspiros inconformados dos fãs como mais uma gloriosa homenagem.
Isso não será problema. Problema será outra coisa.
Problema será o banho.
Momento temível, esse, o do primeiro banho após a aposentadoria. No recinto fechado, sem ninguém para vê-lo nem para ouvi-lo, ele se despirá lentamente. Abrirá o chuveiro, experimentará a temperatura da água, vacilará um instante e se introduzirá sob o tépido jorro. E as gotas de água, golpeando insistentemente sua pele, dirão, incansáveis: "Canta! Canta!". Como todos os seres humanos -categoria que inevitavelmente inclui os grandes tenores-, ele se sentirá tentado a cantar, e a plenos pulmões. Mas e a promessa? A promessa formulada num programa de TV, diante de milhões de espectadores? Não, ele não pode cantar. Mesmo porque alguém certamente ouvirá: a camareira, o mordomo. A notícia se espalhará e será o escândalo: "Famoso tenor não cumpre a promessa".
A custo, levando a mão à boca, ele se conterá para não entoar o "Nessun dorma". Resistirá bravamente. Mas será uma vitória, ainda que parcial. Porque, em algum momento desse banho, ele deixará escapar um débil gemido. Um gemido que bem poderá ser uma nota musical. Qualquer uma das muitas notas que compõem aquela imortal ária de Puccini, o "Nessun dorma".


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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