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SEGURANÇA
Para pesquisador, Estado inacessível só ajuda a criminalidade; mudança exige troca de informações e reformas
Violência vira saída alternativa, diz professor
MAURÍCIO SANTANA DIAS
DA REDAÇÃO
Antes que os efeitos ameaçadores do crime organizado sobre a
vida dos brasileiros comecem a
perder força, é necessário rever o
sistema judicial e a relação perversa entre o Estado e a sociedade.
Quem diz isso é o antropólogo
Roberto Kant de Lima, 56, professor titular da Universidade Federal Fluminense que há cerca de 20
anos faz pesquisa de campo em
instituições judiciárias e policiais
do Brasil e dos Estados Unidos.
Entre as prioridades apontadas
por Kant de Lima, que é contra a
unificação das polícias e discorda
da força-tarefa criada para combater o crime no Rio, está a reforma do Código de Processo Penal.
"A invenção da figura do "delegado" é de 1840, e o inquérito policial é de 1870, anterior à República, portanto. Entre os países ocidentais, isso só existe no Brasil."
Leia a seguir a entrevista que o
antropólogo concedeu à Folha.
Folha - O crime organizado no
Brasil já é um Estado paralelo?
Roberto Kant de Lima - Aqui não
existe "Estado paralelo". A questão é que os bandidos são tão particularistas quanto o Estado. Os
traficantes não querem tomar o
poder, querem tocar o negócio
deles. Já na Colômbia, eles querem virar governo. Nesse caso se
pode falar em Estado paralelo.
Folha - O que o sr. acha da força-
tarefa criada recentemente para
combater o crime no Rio?
Kant de Lima - Há uma questão
prévia para que ela funcione: a
criação de um protocolo de troca
de informações. A tradição brasileira valoriza positivamente a
apropriação particularizada de
informações para fortalecer o
exercício do poder. Ou seja, tem
mais valor aquilo que é inacessível
aos outros e, mesmo assim, pode
ter efeitos públicos, como é o caso
do inquérito policial. No Rio, a
Polícia Civil fala em uma banda
de rádio e a Polícia Militar em outra. O que acontecerá se juntarmos a isso a Polícia Federal, as três
Forças Armadas, a Receita Federal etc., cada uma com "suas" informações? Para administrar com
eficácia é fundamental ter acesso
a informação qualificada. Mas será que isso vai ocorrer? Por outro
lado, ficar subindo o morro e dando tiros não adianta nada. O que
falta na área de segurança pública
são fóruns de discussão. Esse projeto de unificação das polícias
também não leva a nada. O que
tem de ser mudado primeiramente é o nosso Código de Processo
Penal, cuja reforma está há anos
tramitando no Congresso. É complicado, mas tem de ser feito. Há
no país um sentimento brutal de
impunidade, uma sensação generalizada de perda da legitimidade.
Para que isso mude é preciso começar pela base, mexendo no
processo penal. A invenção da figura do "delegado" é de 1840 e o
inquérito policial é de 1870, anterior à República, portanto.
Folha - Mas a idéia de cidadania
não tem se fortalecido?
Kant de Lima - Há aqui uma elite
que não quer saber de cidadania.
O prefeito do Rio de Janeiro, no
dia seguinte às notícias do assassinato do jornalista Tim Lopes, disse que não importava a morte de
500 ou mil de seus munícipes se
fosse para a restauração da ordem. Por outro lado, ainda há
uma esquerda que acha que direito civil é "coisa de burguês". Só
que não há direitos humanos sem
direitos civis. O jurista, por sua
vez, naturaliza a desigualdade ao
defender privilégios como a prisão especial. Se os direitos são desiguais, por que os deveres seriam
iguais? O resultado é aquilo que o
cineasta João Salles chamou de
"guerra particular". Mas não basta reformar o código. É preciso saber quem vai executá-lo -e com
que dinheiro. Não basta comprar
armas e carros para as polícias.
Não há verba que chegue para isso. É preciso investir em capacitação de pessoal, em creches e escolas para que toda a população
possa ter acesso à educação. Caso
contrário, a violência só vai aumentar, e as pessoas cada vez
mais vão se fechar em suas casas.
Folha - Por que o sr. é contra o
projeto de unificação das polícias?
Kant de Lima - Porque a Polícia
Militar não quer extinguir o cartório da Polícia Civil. O que ela
quer é o cartório também para si.
E esse lobby é pesadíssimo.
Folha - As estatísticas mostram
um aumento considerável da violência nos últimos dez anos. Como
analisar esse quadro?
Kant de Lima - Nessa área, as estatísticas têm graves problemas,
desde os critérios para registrar
até as categorias de fatos a serem
registradas. Mas é certo que estamos passando por um crescimento progressivo de violência. No
nosso país, há dois discursos: o liberal, das igualdades de todos perante a lei, e o hierárquico, caracterizado, por exemplo, pela "prisão especial". A violência decorre
antes de tudo do atrito entre esses
modelos. Assim, em vez de haver
a internalização de uma regra para todos, parte-se para a pergunta
"você sabe com quem está falando?" e internaliza-se a hierarquia.
O problema é mais grave porque
na prática não há como internalizar a regra. A começar porque
neste país não há escola para todos . Querem que os bandidos se
comportem como cidadãos, mas
não lhes dão condições para isso.
E a classe média é a primeira a
apropriar-se particularizadamente do espaço público, cercando-o
e excluindo os demais de seu uso.
Se os que vão à escola não querem
universalizar o espaço público,
muito menos o marginal o quer.
Folha - Como o sr. avalia a ação do
Estado brasileiro diante desses
problemas?
Kant de Lima - O Estado tem sistematicamente empregado uma
estratégia militar ou meramente
punitiva para lidar com os conflitos, quando deveria proteger a todos -e não apenas a uma categoria ou segmento da sociedade. Assim, ele acaba se transformando
num Estado do bem contra o mal.
Portanto, de um lado, temos dois
modelos de controle social paradoxais -o hierárquico e o igualitário- e, de outro, a ausência de
instituições públicas que sejam
acessíveis a toda a população.
Com isso, se abre uma frente para
saídas alternativas: a administração dos conflitos pela violência.
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