São Paulo, segunda-feira, 01 de julho de 2002

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SEGURANÇA

Para pesquisador, Estado inacessível só ajuda a criminalidade; mudança exige troca de informações e reformas

Violência vira saída alternativa, diz professor

MAURÍCIO SANTANA DIAS
DA REDAÇÃO

Antes que os efeitos ameaçadores do crime organizado sobre a vida dos brasileiros comecem a perder força, é necessário rever o sistema judicial e a relação perversa entre o Estado e a sociedade.
Quem diz isso é o antropólogo Roberto Kant de Lima, 56, professor titular da Universidade Federal Fluminense que há cerca de 20 anos faz pesquisa de campo em instituições judiciárias e policiais do Brasil e dos Estados Unidos.
Entre as prioridades apontadas por Kant de Lima, que é contra a unificação das polícias e discorda da força-tarefa criada para combater o crime no Rio, está a reforma do Código de Processo Penal.
"A invenção da figura do "delegado" é de 1840, e o inquérito policial é de 1870, anterior à República, portanto. Entre os países ocidentais, isso só existe no Brasil."
Leia a seguir a entrevista que o antropólogo concedeu à Folha.

Folha - O crime organizado no Brasil já é um Estado paralelo?
Roberto Kant de Lima -
Aqui não existe "Estado paralelo". A questão é que os bandidos são tão particularistas quanto o Estado. Os traficantes não querem tomar o poder, querem tocar o negócio deles. Já na Colômbia, eles querem virar governo. Nesse caso se pode falar em Estado paralelo.

Folha - O que o sr. acha da força- tarefa criada recentemente para combater o crime no Rio?
Kant de Lima -
Há uma questão prévia para que ela funcione: a criação de um protocolo de troca de informações. A tradição brasileira valoriza positivamente a apropriação particularizada de informações para fortalecer o exercício do poder. Ou seja, tem mais valor aquilo que é inacessível aos outros e, mesmo assim, pode ter efeitos públicos, como é o caso do inquérito policial. No Rio, a Polícia Civil fala em uma banda de rádio e a Polícia Militar em outra. O que acontecerá se juntarmos a isso a Polícia Federal, as três Forças Armadas, a Receita Federal etc., cada uma com "suas" informações? Para administrar com eficácia é fundamental ter acesso a informação qualificada. Mas será que isso vai ocorrer? Por outro lado, ficar subindo o morro e dando tiros não adianta nada. O que falta na área de segurança pública são fóruns de discussão. Esse projeto de unificação das polícias também não leva a nada. O que tem de ser mudado primeiramente é o nosso Código de Processo Penal, cuja reforma está há anos tramitando no Congresso. É complicado, mas tem de ser feito. Há no país um sentimento brutal de impunidade, uma sensação generalizada de perda da legitimidade. Para que isso mude é preciso começar pela base, mexendo no processo penal. A invenção da figura do "delegado" é de 1840 e o inquérito policial é de 1870, anterior à República, portanto.

Folha - Mas a idéia de cidadania não tem se fortalecido?
Kant de Lima -
Há aqui uma elite que não quer saber de cidadania. O prefeito do Rio de Janeiro, no dia seguinte às notícias do assassinato do jornalista Tim Lopes, disse que não importava a morte de 500 ou mil de seus munícipes se fosse para a restauração da ordem. Por outro lado, ainda há uma esquerda que acha que direito civil é "coisa de burguês". Só que não há direitos humanos sem direitos civis. O jurista, por sua vez, naturaliza a desigualdade ao defender privilégios como a prisão especial. Se os direitos são desiguais, por que os deveres seriam iguais? O resultado é aquilo que o cineasta João Salles chamou de "guerra particular". Mas não basta reformar o código. É preciso saber quem vai executá-lo -e com que dinheiro. Não basta comprar armas e carros para as polícias. Não há verba que chegue para isso. É preciso investir em capacitação de pessoal, em creches e escolas para que toda a população possa ter acesso à educação. Caso contrário, a violência só vai aumentar, e as pessoas cada vez mais vão se fechar em suas casas.

Folha - Por que o sr. é contra o projeto de unificação das polícias?
Kant de Lima -
Porque a Polícia Militar não quer extinguir o cartório da Polícia Civil. O que ela quer é o cartório também para si. E esse lobby é pesadíssimo.

Folha - As estatísticas mostram um aumento considerável da violência nos últimos dez anos. Como analisar esse quadro?
Kant de Lima -
Nessa área, as estatísticas têm graves problemas, desde os critérios para registrar até as categorias de fatos a serem registradas. Mas é certo que estamos passando por um crescimento progressivo de violência. No nosso país, há dois discursos: o liberal, das igualdades de todos perante a lei, e o hierárquico, caracterizado, por exemplo, pela "prisão especial". A violência decorre antes de tudo do atrito entre esses modelos. Assim, em vez de haver a internalização de uma regra para todos, parte-se para a pergunta "você sabe com quem está falando?" e internaliza-se a hierarquia. O problema é mais grave porque na prática não há como internalizar a regra. A começar porque neste país não há escola para todos . Querem que os bandidos se comportem como cidadãos, mas não lhes dão condições para isso. E a classe média é a primeira a apropriar-se particularizadamente do espaço público, cercando-o e excluindo os demais de seu uso. Se os que vão à escola não querem universalizar o espaço público, muito menos o marginal o quer.

Folha - Como o sr. avalia a ação do Estado brasileiro diante desses problemas?
Kant de Lima -
O Estado tem sistematicamente empregado uma estratégia militar ou meramente punitiva para lidar com os conflitos, quando deveria proteger a todos -e não apenas a uma categoria ou segmento da sociedade. Assim, ele acaba se transformando num Estado do bem contra o mal. Portanto, de um lado, temos dois modelos de controle social paradoxais -o hierárquico e o igualitário- e, de outro, a ausência de instituições públicas que sejam acessíveis a toda a população. Com isso, se abre uma frente para saídas alternativas: a administração dos conflitos pela violência.


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